À primeira vista, pode parecer que a ficção de gêneros (genre fiction) não exerce função artística grandiosa, mas existe apenas para atender critérios de qualidade particulares de nichos específicos do mercado. Literatura de fantasia para os fãs de aventuras mágicas, horror para entusiastas do macabro, ficção científica para os aficionados do gênero – e o romance policial para amantes do mistério.
Porém, um questionamento mais aprofundado sobre o que são, de fato, os gêneros em questão basta para comprovar a superficialidade desse julgamento. Enquanto a fantasia fornece, através do mágico e surreal, um espelho para desejos e conflitos do mundo “real”, a boa literatura de horror propõe reflexões filosóficas e existenciais complexas, dignas de análise cuidadosa.
O mesmo vale para o romance policial. Dos suspenses clássicos aos tradicionais whodunits britânicos, dos detetives particulares da literatura pulp aos thrillers modernos e seus geniais assassinos em série, a ficção policial tem o potencial de representar, auxiliada pela força do mistério, as mais terríveis mazelas da sociedade. Povoadas de personagens diversos (representantes de grupos e classes sociais distintas), as narrativas policiais frequentemente expõem perigosas relações de poder dissecadas pelos mestres do gênero com toda a técnica de um médico legista realizando uma autópsia. Mais do que adivinhar de antemão a identidade do assassino, o prazer neste tipo de leitura está em analisar como o autor utiliza as convenções do gênero para tratar de temáticas universais, que transcendem os clichês do nicho.
Personagens conhecidos
É neste ponto que está o acerto de O Sorriso da Hiena, romance de estreia do publicitário Gustavo Ávila. Rara história de sucesso do mercado editorial independente, o livro foi republicado pela Editora Verus, do Grupo Editorial Record, e teve seus direitos de adaptação adquiridos pela Rede Globo. O interesse televisivo na narrativa tem suas razões: a temática central do romance – a origem do mal – é uma questão complexa e uma base ideal para uma grande narrativa policial. Todavia, a trama, embora relativamente satisfatória em questão de suspense, decepciona ao não fornecer uma reflexão verdadeiramente profunda sobre o tema.
O conflito principal de O Sorriso da Hiena envolve William, psicólogo infantil, e o enigmático David, que testemunhou o assassinato dos pais aos oito anos de idade. Um psicopata na idade adulta, David propõe a William um experimento: recriar com diversas famílias o crime em questão, acompanhando o crescimento das crianças após o assassinato dos pais. Para David, trata-se de conhecer melhor a si mesmo: seria seu impulso assassino resultado de uma infância traumática, ou a maldade lhe seria natural? Para William, é a oportunidade ideal de comprovar, na prática, as teorias que consolidaram sua carreira.
Mais do que adivinhar de antemão a identidade do assassino, o prazer neste tipo de leitura está em analisar como o autor utiliza as convenções do gênero para tratar de temáticas universais, que transcendem os clichês do nicho.
A relação que se desenvolve entre os dois rumo ao clímax da história tem tons da última encarnação televisiva de Hannibal Lecter e Will Graham, enquanto a personagem de Artur, detetive com síndrome de Asperger (distúrbio que, a este ponto, beira o clichê), evidencia ainda mais as influências diretas de seriados e filmes recentes (como Sherlock, da BBC, e The Bridge).
Questões de linguagem
O maior problema, contudo, não está na presença de personagens e conflitos que já vimos antes, mas na linguagem utilizada pelo autor – que, por vezes, deixa clara a origem do romance como publicação independente, externa ao meio profissional. É difícil encontrar, ao término das 266 páginas, indícios de uma voz verdadeiramente autoral, ou tampouco da prosa afiadamente descritiva, característica da grande literatura policial.
Ainda, há um predomínio desconcertante do contar (telling) sobre o mostrar (showing), violação de um dos preceitos básicos da literatura de ficção. As características que definem as personagens são listadas pelo autor, e não demonstradas através de suas ações. O leitor é frequentemente levado pela mão, conforme evidenciam passagens como esta: “Aos dez anos, tinha sido diagnosticado com síndrome de Asperger, um tipo de autismo que não causa nenhum atraso no desenvolvimento intelectual, mas molda a pessoa com certas peculiaridades”.
Neste ponto, portanto, Ávila tem um certo caminho a percorrer se pretende firmar seu nome como grande escritor de romances policiais no Brasil. Porém, a futura adaptação para a televisão, ao dar ênfase ao suspense e aos diálogos (que soam mais naturais do que o resto da prosa), tem potencial para solucionar alguns destes problemas e aproveitar o que o livro faz de melhor. Em suma, O Sorriso da Hiena, enquanto romance policial, é um bom seriado de TV.
O SORRISO DA HIENA | Gustavo Ávila
Editora: Verus – Grupo Editorial Record;
Tamanho: 266 págs.;
Lançamento: Junho, 2017.