Por Vitor Ferraz*, especial para Escotilha
O ato de abrir um jornal de papel para ler notícias do dia anterior quase não existe mais em nossa sociedade sedenta por velocidade e imediatismo. O jornalismo praticado no século XXI, especialmente em nossa década, não tem quase ligação alguma com a imprensa do início do século XX, época em que Lima Barreto publicava seus trabalhos. Porém, o ato de entender o presente tem muita relação com o ato de olhar para o passado. Por isso, é justamente sobre uma de suas obras que falo hoje, Recordações do Escrivão Isaías Caminha, publicado em 1909.
O enredo pode ser analisado de diversas formas. É possível fazermos uma análise sobre o êxodo rural, as dificuldades enfrentadas pelos pobres ou, até mesmo, como o preconceito com negros acontecia naquela época. Esse texto irá discutir como a imprensa é retratada no romance e o que ela pode ensinar para o jornalismo da era do fake news. Vamos ao enredo?
Pois bem, Isaías é um jovem mulato, morador de uma pequena cidade interiorana que, após ler um artigo no qual descobre que um de seus colegas vivia bem no Rio de Janeiro, decide seguir sua intuição e ir à capital. Ao chegar na cidade grande, ele percebe que de nada valerá sua carta de recomendação, destinada a um deputado carioca. Precisando então de dinheiro para se sustentar, Isaías começa a trabalhar no jornal O Globo, se envolvendo no mundo da imprensa.
A primeira coisa que vale a pena discutirmos é a importância que era dada aos jornais da época. Vivemos na atualidade sob uma verdadeira chuva de ataques e acusações contra os grandes veículos, o trabalho do jornalista está sendo tratado, cada vez mais, como apenas um acessório do “mecanismo de alienação” que é pintado na imprensa. Bom, obviamente que uma boa parte dessa falácia é exagerada, mas ainda assim demonstra um fenômeno que acontece mundialmente: o jornalista sente-se desvalorizado. Perceba como Lima retrata os jornalistas de sua época:
“Oh! A vaidade dos desconhecidos da imprensa é imensa! Todos eles se julgam com funções excepcionais, proprietários da arte de escrever, acima de todo o mundo”.
É possível fazermos uma análise sobre o êxodo rural, as dificuldades enfrentadas pelos pobres ou, até mesmo, como o preconceito com negros acontecia naquela época.
É bem verdade que alguns jornalistas, os mais conhecidos, ainda possuem esse orgulho descrito por Lima. Porém, qualquer um que entra na academia e conversa com os novos jornalistas pode perceber que o pessimismo é grande. Esse orgulho e iniciativa dos profissionais da comunicação fazem bastante falta em nossos tempos, ser jornalista não tem mais o mesmo status que antigamente e isso pode ser muito prejudicial para a função social que exercem esses profissionais. Lima era bastante ácido ao refletir sobre como os jornalistas atuavam:
“Nada há tão parecido como o pirata antigo e o jornalista moderno: a mesma fraqueza de meios, servida por uma coragem de salteador; conhecimentos elementares do instrumento de que lançam mão e um olhar seguro, uma adivinhação, um faro para achar a presa e uma insensibilidade, uma ausência de senso moral a toda a prova…”
Esse faro aguçado e a habilidade para achar sua “presa” são qualidades primordiais para os dias de hoje. O jornalista contemporâneo enfrenta uma época cercada por rumores, corrupção e autoridades que dominam a arte de conversar com a imprensa (o chamado media training). A profundidade necessária para a revelação de fatos insólitos só acontece quando o jornalista atua igual a um pirata, não de forma ilegal, mas sabendo o momento certo para “atacar” seu alvo.
Lima também faz críticas ao sensacionalismo do jornalismo, muito comum em nosso tempo. Os escândalos públicos e a violência desmedida ainda são gatilhos para a venda de alguns veículos, não cabe ao autor que lhe escreve discutir se isso está certo ou não, mas tal prática ocupa espaços que poderiam trazer discussões mais reflexivas. Enfim, assim descreve Lima:
“A não ser o Jornal do Comércio, pode-se dizer que os diários do Rio nada têm o que se leia e todos eles se parecem, pois todos têm a preocupação de noticiar crimes, escândalos domésticos e públicos, curiosidades […]”.
É exatamente contra esse discurso que o jornalismo atual deve lutar. Ser igual ao concorrente, ainda mais em um contexto em que o leitor não assume apenas um papel passivo, é não se destacar, manter-se escondido.
Lima é conhecido por seu tom crítico e revelador, personagens que antes ficavam à margem da literatura são trazidos para o centro e, certamente, o mesmo acontece com os problemas do jornalismo. Quem busca obras que discutem temas importantes, atuais, problematizadores e recheados de ironia, não pode deixar de ler Lima Barreto!
RECORDAÇÕES DO ESCRIVÃO ISAÍAS CAMINHA | Lima Barreto
Editora: Penguin;
Tamanho: 312 págs.;
Lançamento: Novembro, 2010 (atual edição).
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* Vitor Ferraz é natural de Curitiba. Formado em Jornalismo e Letras Português/Inglês, gosta de escrever sobre literatura brasileira e o jornalismo atual. Publica no Instagram @projetobrainfood sobre diversos temas.