Quando Thomas Piketty publicou o seu estudo Capital no Século XXI, um dos maiores levantamentos da distribuição de renda numa linha histórica das últimas décadas, o resultado foi chocante, mas não surpreendente. O economista francês e a sua equipe constataram que estamos no ápice da desigualdade, com uma pequena parcela da população mundial acumulando um excedente de riqueza fora de qualquer projeção e sem qualquer forma de controle ou regulação sobre ela.
O sistema econômico capitalista absorveu anormalidades como essa de forma normatizada, tornando-se anomalias que seriam absurdas em outras configurações de um sistema de economia, mas que no seu seio se tornam características normais. Como essa riqueza e poder se acumularam concentrando-se somente nesse 1% super-rico, tornando-os, segundo a expressão de Adam Smith, “senhores da humanidade”?
Buscando traçar quais os 10 princípios fundamentais da concentração de riqueza e poder, Noam Chomsky — um dos maiores pensadores, linguista e filósofo político vivos — responde a essa questão e elabora reflexões importantes sobre o futuro da humanidade na obra Réquiem Para o Sonho Americano.
O livro é a adaptação do documentário Requiem For American Dream, produzido por Peter Hutchison, Kelly Nyks e Jared P. Scott. Nele, Chomsky expõe, numa espécie de aula, as dez características que baseiam o acúmulo de poder e riqueza na estrutura da economia e da história dos Estados Unidos.
O livro — publicado em 2017 pelo selo Bertrand Brasil, na tradução de Milton Chaves de Almeida — funciona como uma espécie de bloco de anotações do documentário. Todos os elementos abordados por Chomsky no documentário não perdem a força na didática do seu trabalho escrito.
A comparação entre as duas plataformas se enriquece justamente pelo fato do leitor ver no filme uma das maiores mentes das últimas décadas em plena atividade, enquanto no livro se tem a plena clareza das exposições dos argumentos, bem concatenados e sem perder a acessibilidade das suas ideias.
O foco da abordagem de Chomsky está na questão do acúmulo de riqueza e poder por meio de subterfúgios que restringem a democracia enquanto espaço da representação da vontade popular. Pegando esse mote, o filósofo americano formula esses dez princípios que norteiam a concentração na mão de poucos, o pleno domínio da maioria. Em linhas gerais, os princípios podem ser resumidos da seguinte forma, conforme Chomsky os lista:
1) Restringir a democracia: a quem serve a democracia? Entende-se, num aspecto ideal do discurso democrático, que ela sirva ao povo. Contudo, como se estrutura a distribuição dos cargos públicos fundamentais? Eles estão nas mãos daqueles que detém o controle econômico da sociedade, os privilegiados, que moldam a democracia de acordo com os seus interesses privados e não os coletivos, fortalecendo o ganho e aumento das próprias riquezas;
O livro — publicado em 2017 pelo selo Bertrand Brasil, na tradução de Milton Chaves de Almeida — funciona como uma espécie de bloco de anotações do documentário. Todos os elementos abordados por Chomsky no documentário não perdem a força na didática do seu trabalho escrito.
2) Moldar a ideologia: O Memorando Powell é um sintomático documento que sintetiza bem esse princípio aqui. Ele foi escrito com o objetivo de alertar os membros do mundo corporativo estadunidense de que eles estava “perdendo o ‘controle’ sobre a sociedade”. Isso inverte os papéis, colocando os capitalistas como sujeitos perseguidos por “esquerdistas desvairados” e que, tendo eles maiores recursos, deveriam confrontar esse perigo para proteger a “liberdade”. E isso foi e é feito em diferentes frentes, seja elas educacionais ou no discurso que apresenta qualquer alternativa ideológica como um risco;
3) Reestruturar a economia: a partir da criação de complexas ferramentas econômicas, da financeirização e terceirização internacional da produção, junto com as grandes instituições financeiras conseguir obter o maior controle monetário e incidir um duro processo de insegurança na mão de obra — essa cada vez mais barata e limitada em seus direitos;
4) Transferir o fardo: aqui a matemática é simples. O fardo é o pagamento de impostos. Por uma lógica igualitária, quem ganha mais deve pagar impostos correspondentes aos seus ganhos. Quem ganhar menos, idem. No entanto, a lógica perversa de manutenção de poder e riqueza da elite econômica mundial, segundo Chomsky, transfere esse fardo para as mãos da base da pirâmide e para o Estado, responsável por perdoar e redistribuir suas dívidas;
5) Atacar a solidariedade: os programas sociais de um governo, até mesmo aqueles que basilares como a Previdência Social, baseiam-se na solidariedade, enquanto sentimento essencialmente humano. Controlar o discurso e transformar esses programas num risco econômico — como se fossem responsáveis por rombos nas contas públicas, o que é uma inverdade — oferecendo a alternativa da privatização desses serviços é o quinto princípio de concentração de poder e riqueza;
6) Controlar os reguladores: como garantir a segurança de um órgão regulador se quem os gerencia são indivíduos que têm profunda relação com o mercado financeiro? O lobby é o grande elemento aqui, pois ele é a ferramenta que permite a direta interferência na regulação para que ela sempre atenda aos interesses do mercado, e não os da população;
7) Controlar as eleições: aqui é a aplicação da máxima em que “concentração de riqueza gera concentração de poder político”. O discurso de importância do voto, enquanto “extravagância eleitoral”, tira o foco de que o real controle do sistema político está nas mãos do capital privado e investidores. O financiamento milionários de campanhas não é um financiamento, é um investimento e ele exige retorno. E esses retornos voltam para as grandes corporações;
8) Manter a ralé na linha: o exemplo é da realidade norte-americana onde a organização de representações dos interesse dos trabalhadores, os sindicatos, é totalmente limitada, o que provoca uma intensa exploração da sua força de trabalho;
9) Fabricar o consenso: através da propaganda, e partindo do pressuposto da limitação intelectual das massas, a elite “deve manipular a concordância da população com respeito às decisões da minoria inteligente”. Por meio disso fabrica consumidores, através da indústria da publicidade, aglutinando “uma sociedade inteira num sistema de consumo perfeito”.
10) Marginalizar a população: explorar o ódio gratuito — vide Trump — e redirecionar esse sentimento para “alvos frágeis e inofensivos”, além de segregar os ativistas como figuras escusas retirando a relevância dessas figuras para as conquistas de importantes direitos da população.
Numa linguagem acessível, Réquiem Para o Sonho Americano conta com suporte, ao final de cada capítulo, de documentos, trechos jornalísticos, testemunhos jurídicos, que sedimentam os argumentos de Chomsky e tecem um panorama amplo, que clarifica e permite compreender os expedientes adotados pelo capital para manutenção do seu controle econômico e político.
RÉQUIEM PARA O SONHO AMERICANO | Noam Chomsky
Editora: Bertrand Brasil;
Tradução: Milton Chaves de Almeida;
Tamanho: 192 págs.;
Lançamento: Outubro, 2017.