Quando praticamente todos os jornalões publicam resenhas favoráveis de um livro e os amigos também começam a elogiar a obra de forma efusiva, fica até meio difícil não criar certa expectativa. Ao comprar o meu exemplar de Simpatia Pelo Demônio, de Bernardo Carvalho, lançado recentemente pela Companhia das Letras, achei que viria de brinde um saquinho de confetes ou quem sabe um marcador de página em forma do Nobel de Literatura. Mas aí lembrei que o autor já havia cometido Reprodução, romance pavoroso que venceu o prêmio Jabuti em 2014 (o que me levou a pensar se os livros são avaliados a partir de uma leitura mínima, sei lá, pelo menos a orelha do livro, ou se é só na base do uni duni tê mesmo), e contive um pouco o entusiasmo.
E não é que o livro começa bem pra caralho? Já nas primeiras páginas é possível entender o entusiasmo com a obra, pois a história do funcionário brasileiro de uma agência humanitária em Nova York, que precisa ir para uma zona de conflito participar de uma negociação de resgate, é intrigante e cria um clima de tensão muito curioso. Algumas referências eruditas começam a surgir aqui e ali de forma meio solta, mas ok, o personagem estuda a violência então a gente até aceita que o autor interrompa a história pra mostrar que é cultão e solte um Telecurso 2000 de sociologia aqui e ali.
Bernardo Carvalho, que obviamente escreve muito bem, usa esse início para fisgar o leitor e jogá-lo numa outra história não tão emocionante assim.
O problema (ou o que muita gente viu como grande sacada) é que tudo aquilo ali no começo era só um anzol com uma minhoca gorducha dando sopa. Bernardo Carvalho, que obviamente escreve muito bem, usa esse início para fisgar o leitor e jogá-lo numa outra história não tão emocionante assim. A quebra inesperada de ritmo, e talvez até de gênero literário, causa estranheza, o que é ótimo já que frustra as expectativas do leitor, o problema é que ele para de contar uma história interessante e do nada começa a narrar um episódio da Malhação em versão gay +18.
É como se no meio da temporada, Homeland virasse Glee. Fica uma forte impressão de que o autor possuía anotações bastante distintas em seus caderninhos e pensou “e se eu juntar esse monte de coisas aleatórias, será que rende um bom livro?”. O pessoal da imprensa achou que sim. Particularmente, achei o resultado um tanto constrangedor e tentarei explicar o porquê.
Vou contar o enredo desta segunda metade do livro e gostaria que o leitor não tivesse em mente nenhuma comédia, ou draminha romântico do cinema norte-americano dos anos 2000: um protagonista numa relação estável se apaixona por outra pessoa, começam então um envolvimento sexual, se separa pra viver esse louco amor, mas essa outra pessoa no fundo não está apaixonada, só faz manha, cria uns joguinhos psicológicos irritantes e brinca com os sentimentos do pobre coitado pra mostrar quem é que manda. Enfim, o protagonista toma no cu, às vezes consegue um final feliz com reviravolta e música bonita, mas outras vezes fica tudo por isso mesmo, segue em frente, tem outras burradas.
Cara, sério? O povo anda premiando esse tipo de coisa? Pobre demônio, nem merecia ter seu nome sendo usado dessa forma.
O autor tenta dar um tom de fábula à sua história, justamente para refletir sobre a questão do maniqueísmo e os papéis dos indivíduos nas relações. Então o protagonista se chama “o Rato” (com letra maiúscula e sempre antecedido pelo artigo, o que deixa tudo meio estranho já que é um nome/apelido e ao mesmo um adjetivo), e seu algoz se chama chihuahua (só com minúsculas e sem o artigo, pra mostrar que o narrador precisa diminuí-lo. Percebeu a piscadinha inteligente?). Quando o Rato está lá no meio da treta na negociação de resgate, acaba se deparando com um homem-bomba e aí a história para e ele começa a se lembrar de seu envolvimento com chihuahua, um estudante mexicano que ele conheceu em Berlim.
E o livro é sobre esse flashback, sobre como ele se apaixonou por esse cara, como eles viveram uma tórrida paixão e, assim como numa letra de pagode, como chihuahua jogou fora o amor que o Rato lhe deu. O autor vai relacionando amor e sofrimento, já que o personagem simplesmente não consegue superar o que sente, pois se joga numa relação em que sabe que está apenas sendo usado feito o pobre galã que sofre nas mãos do ardiloso vilão da novela mexicana (talvez a origem do personagem seja até uma referência). Tudo isso é batido no liquidificador com referências a vários autores que pensaram o Mal e suas implicações na vida humana ao longo da história.
Bernardo Carvalho sabe que não está inventando a roda ao contar uma história com um casal homossexual, algo bastante manjado não só na literatura contemporânea, então felizmente não perde tempo tentando transformar o livro num panfleto sobre questões de gênero, pois aquilo é apenas uma história de amor entre dois caras. Não há coragem alguma nisso, já que é uma coisa banal, mas pelo menos é uma decisão acertada.
O caso é que essa história é um saco. Os personagens se comportam como crianças birrentas e são muito, mas muito irritantes, num nível Malhação mesmo (mas não da fase Múltipla Escolha, pois aquela era legal, tinha a Vagabanda). A ideia de demonstrar a confusão mental e a angústia do Rato por via da repetição (o personagem informa que o relacionamento foi terminado via Skype pelo menos umas 8 vezes) traz certo naturalismo, uma sensação de vertigem comum nessas situações , mas também inunda as páginas de puro tédio. É como se você estivesse observando um adolescente de coração partido chorando suas pitangas, mas só que ali é um marmanjo que se ressente, pois sabe que já está velho para viver uma nova história de amor, então só lhe resta chafurdar na pena que sente de si mesmo.
Toda a tentativa de dar um verniz erudito a uma história tão fraca, soa meio manca e apelativa, quase irresponsável, pois não há citação de George Bataille que dê jeito de fazer aquilo ali parecer uma narrativa sofisticada ou minimamente interessante, é como passar desodorante sem ter tomado banho por uma semana, simplesmente não dá pra disfarçar o problema.
Dito isso, fica claro que o livro é um forte candidato ao próximo Prêmio Jabuti.
SIMPATIA PELO DEMÔNIO | Bernardo Carvalho
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 240 págs.;
Lançamento: Agosto, 2016.