Partindo de uma perspectiva patológica, a passagem do século XX para o século XXI trouxe consigo uma alteração no quadro das enfermidades mais comuns entre os seres humanos. Assim, o Ocidente passou de uma era caracterizada por doenças virais e bacteriológicas para uma era de enfermidades neuronais. Essa é uma das ideias centrais do ensaio Sociedade do Cansaço (Editora Vozes, 2015) do sul-coreano Byung-Chul Han.
Nesse pequeno e instigante tratado, o professor de Filosofia e Estudos Culturais da Universidade de Berlim dialoga com o pensamento de Nietzsche, Benjamin, Heidegger, Foucault, Agamben e outros pensadores para sondar as enfermidades produzidas pelos dispositivos de poder das sociedades neoliberais do mundo contemporâneo.
No segundo capítulo, “Além da sociedade disciplinar”, o filósofo descreve algumas características da transição da sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho. “A sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a sociedade de hoje. Em seu lugar, há muito tempo, entrou uma outra sociedade, a saber, uma sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais ‘sujeitos de obediência’, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos”.
Segundo o filósofo, essa mudança de paradigma e a recorrência de doenças neuronais no panorama patológico do século XXI (depressão, transtorno de déficit de atenção, síndrome de hiperatividade, síndrome de burnout, etc.) são reflexos do excesso de positividade e das exigências da sociedade de desempenho.
Trata-se de uma positividade, explica o autor, geradora de uma violência que “não é privativa, mas saturante; não excludente, mas exaustiva”. Nesse ponto, o sul-coreano diverge da concepção de sociedade disciplinar analisada por Michel Foucault, em que a “negatividade da proibição” e o imperativo da “coerção” são as principais características, enquanto na sociedade de desempenho predomina o imperativo do poder ilimitado, simbolizado pelo slogan da campanha de Barack Obama,“Yes, we can”.
Nesse sentido, os aspectos da política de controle comportamental e seu imperativo proibitivo, presentes na sociedade disciplinar, cedem espaço ao imperativo do poder ilimitado da sociedade de desempenho. Os distúrbios mais recorrentes seriam oriundos não de um excesso de negatividade, mas de um “excesso de positividade”, originados pela abundância de informação, comunicação e estímulos, características das sociedades pós-modernas de trabalho.
Hiperatividade e multitarefa versus contemplação
Byung-Chul Han identifica que os excessos de estímulos provenientes da hiperinformação (a avalanche de conteúdos, notícias e imagens das redes sociais) também provocam a alteração da “estrutura e economia da atenção”. A capacidade de atenção e concentração profunda dos seres humanos, sem as quais o ato criativo resultaria ameaçado (como observou Walter Benjamin a despeito da ideia de tédio profundo) está aos poucos sendo deslocada para uma atenção cada vez mais superficial, dispersa e fragmentada.
Nesse ponto, Byung-Chul Han utiliza uma citação extraída de Humano, demasiado humano, onde Nietzsche defende o fortalecimento do elemento contemplativo da humanidade em oposição ao seu caráter hiperativo. “Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo”.
Na prática, a hiperatividade vai diminuindo aos poucos a capacidade de concentração profunda do homem, reduzindo-o a um animal trabalhador (animal laborans), a um ser hiperpassivo, anuente a todo e qualquer tipo de estímulo ou impulso. “Em vez de liberdade ela (hiperatividade) acaba gerando novas coerções”. Ela ocorre de diferentes maneiras, desde o jornalista obrigado a entrevistar e filmar simultaneamente o seu entrevistado (excluindo e acumulando a função do cinegrafista) ou do motorista de ônibus, impelido a cobrar a passagem enquanto dirige (eliminando e assumindo o posto do cobrador).
Ao contrário do que possa parecer, a hiperatividade e a maximização da produção e do desempenho não são conquistas da humanidade, mas um enorme retrocesso. Byung-Chul Han relaciona a hiperatividade às funções presente nos animais selvagens, incapazes de concentração e contemplação. Em oposição à hiperatividade e à hiperpassividade do ser humano de desempenho, a vita contemplativa seria o antídoto necessário para o repouso reconciliador do espírito. Nas palavras de Byung-Chul Han, “Depois de terminar sua criação, Deus chamou ao sétimo dia de sagrado. Sagrado, portanto, não é o dia do ‘para isso’, mas o dia do ‘não-para’, um dia no qual seria possível o uso do inútil”. Assim, resgatar o ócio e a contemplação, eis os elementos reparadores do nervosismo e da histeria do mundo contemporâneo.
SOCIEDADE DO CANSAÇO | Byung-Chul Han
Editora: Vozes;
Tradução: Enio Giachini;
Tamanho: 80 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2015.