Há uma história de um menino que falava pouco, se entendia mais com palavras escritas, e se achava mais próximo dos gatos que “das gentes”. Uma versão dessa anedota diz que ele se batizou, embora uma pequena variação conte que o apelido veio de um irmão. Se não fosse essa pequena história teríamos apenas outro nome nas prateleiras e mídias, mas não aquele pelo qual conhecemos o senhor Antônio Emílio Leite Couto, conhecido por Mia Couto.
A origem desse apelido ganhado no exercício da infância e transformado em nome de uso diário dialoga com a sua produção literária. Mais do que soar algo doce ou talvez fantasiado, se olhado com distância, o apelido veio de um recorte cotidiano bem particular do autor, com direito a um brevíssimo jogo de oralidade. Ele mia, está mais perto de gatos, apenas isso. “Apenas”.
O autor retrata os pormenores de Moçambique em sua vasta produção literária, nação que presenciou cenários políticos caóticos, se recuperando após uma guerra que devastou um país ainda em construção. A obra de Mia Couto não tem viés panfletário tampouco é monotemática, pois todas as suas ficções são ambientadas no cotidiano dos seus personagens, às vezes ligadas diretamente à situação nacional, noutras com foco nos indivíduos enquanto contextos além destes servem como pano de fundo.
Mia Couto moldou a identidade de sua obra mesclando trabalhos de linguagem, “obervações” prosaicas e olhares para a situação geral sem a banalizar.
Uma característica marcante da produção do autor é a linguagem. Palavras familiares a nós mas com grafia estrangeira são pouco perto de “xicuembos”, “cushe-cushes” e “ndlatis”, faladas por pessoas que barulham suas vidas e “desconseguem” largar delas enquanto, sem querer, adicionam doses de poesia aos seus afazeres.
O homem sem ocupação “salariável” que aluga os sapatos, o Ex-Futuro Padre e sua Pré-viúva em seus “desconseguimentos” íntimos, a mulher que se tornou nenhuma, o boi que explode graças a um pássaro ou graças a um disco de metal, ou um homem que divide sua existência com um pássaro, como no conto “O último aviso do corvo falador“:
“Era um pedaço de céu que estava-lhe dentro. As dúvidas somavam mais que as respostas.
– Pode um homem parir nos pulmões?
– Vão ver que é a alma da mulher falecida que transferiu no viúvo.
No dia seguinte, Zuzé confirmou esta última versão. O corvo vinha lá da fronteira da vida, ninhara nos seus interiores e escolhera o momento público de sua aparição.”.
Não me cabe responder se um homem pode parir pelos pulmões, embora seja tentador imaginar a cena acontecendo e sua interpretação pela vizinhança do ‘pai da criança’. Entre pequenos absurdos e olhares poético-fantásticos – quando vistos de fora – e naturais para seus personagens, Mia Couto moldou a identidade de sua obra mesclando trabalhos de linguagem, observações prosaicas e olhares para a situação geral sem a banalizar, possibilitando algum conhecimento de Moçambique por seus olhos. E imaginar que ele se descreveu mais próximo de gatos que de “gentes”.
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