Bará – na trilha do vento (Editora Ogum’s, 2015), de Miriam Alves, é um romance que conta a história de Bárbara, menina de 7 anos e sua família. Seus pais, os quitandeiros Gertrude e Mauro, criam os quatro filhos em uma pequena vila. Com eles também vive a matriarca Patrocina, que guiará Bará (apelido de Bárbara) rumo aos rituais da ancestralidade africana.
Dos 24 capítulos, 23 são dedicados à infância de Bará. A garota tem uma relação especial com o vento, que a faz rodopiar e entoar canções estranhas. Para o pai, a esquisitice de Bará é “mal de cabeça”. A sogra Patrocina defende a neta. Todas as mulheres da família, “estranhas”, têm intimidade com as forças da natureza. O vento é um dos elementos, mas a cozinha, plantas e ervas medicinais integram a tradição ritual.
A narrativa da vida da menina Bará reata o tempo ancestral e mítico ao tempo cotidiano. As personagens femininas atuam com vigor, compartilhando amores, desilusões, lágrimas, risos, esperanças, emoções. Não é explicado no romance, mas a palavra “Bará”, na língua yoruba, quer dizer força. É uma divindade dos rituais religiosos africanos que abre e fecha os caminhos, dona das chaves do destino. Através dos sonhos, a menina consegue entrar no mundo invisível, como a avó:
“Então, mãe, com a mão na mão dele fui passear, assim como a senhora está passeando agora no quintal de casa. Mas eu fui mais longe, bem longe mesmo”. Trude ouvia, sem interferir, a história se alongava, não chegava a nenhum ponto final. “Ele me levou a um lugar, bem longe. Longe mesmo. Eu nem sei como chegamos lá. As mulheres com vestidos que cobriam os pés, iguais ao do livro de história que papai deu. Eu ainda não sei ler direito, mas gosto de ver as figuras. Dava para esconder um monte de crianças do tamanho de Ézio debaixo, porque eram bem rodados e armados. Comecei a rir. O tio Sabino deu uma bronca. Falou para eu não rir, porque estávamos em outro tempo, apesar delas não verem a gente, não era para eu rir. Ficou bravo, disse que ninguém tem o direito de rir das pessoas que se comportavam de maneira diferente”. (Página 44)
A narrativa tem dois eixos principais, as relações mágicas das mulheres com as forças da vida e da morte e o cotidiano da família negra.
São os ancestrais, invocados por rituais mágicos, que salvam a vida de Bará, quando ela adoece. A menina fica dias com febre, a mãe lhe dá chás, banhos frios, nada resolve. Quando Trude perde as esperanças, acontece:
“Pela porta principal da sala, uma luz intensa se fez presente e adentraram vários anciãos. Eu estava acordada, mas era como se fosse sonho: velhinhos curvados pela responsabilidade dos anos e sabedoria, apoiados em bengalas, esculpidas com detalhes de folhas, bichos e pessoas que eu desconhecia, entraram. Um deles apontou para um dos quatro cantos da sala e por lá surgiu uma anciã um pouco mais nova que os demais. Trazia nas mãos uma bacia de alumínio que brilhava como o sol, o recipiente continha água e algumas folhas que eu não conhecia. Só pude reconhecer as folhas de mangueira e pitanga: então, a Senhora Anciã veio até a cadeira e, sem pronunciar palavra, ordenou para eu olhar no fundo da bacia, as folhas movimentavam-se desenhando formas. Eu já lhe contei isso, não é? Porém , comadre, toda vez que lembro, como se fosse hoje, me emociono”. (Página 73)
Bará, tal como a homônima cristã Santa Bárbara – protetora contra raios, trovões e tempestades -, tem poderes sobrenaturais, revelados de forma lúdica:
“O vento levantava poeira em redemoinhos vermelhos; na rua de terra batida, Bará corria na direção do ar em movimento, rodopiava imitando a circulação da lufada, misturando-se ao pó em suspensão que a cobria. Girava. Girava, como querendo sumir na atmosfera, igual às partículas deslocadas do chão. Baixinho entoava uma cantiga: “Ia vevera io. Na tunga Bárbara. Natinga lelea. Lelea na tiga ia. Vevea natinga ioa. Ioa. Ioa. Ioa. Natinga. Vivea Bárbara”. (Página 98).
A narrativa tem dois eixos principais, as relações mágicas das mulheres com as forças da vida e da morte e o cotidiano da família negra. Esta família representa milhares de outras famílias negras brasileiras. Como as famílias não negras, suas vidas se organizam em torno do trabalho, conquistas sociais e comemorações. Uma das virtudes do romance de Miriam Alves é demonstrar que ser negro não é fato extraordinário na ordem social. Famílias negras têm sonhos e aspirações como as famílias brancas. São constituídas por avós, pais e filhos, inseridas em comunidades diversas.
Miriam Alves é poeta, dramaturga e prosadora brasileira, nascida em São Paulo, em 1952. Entre seus livros estão Momentos de Busca (1983, poesia), Estrelas nos dedos (1985), Terramara (1988, teatro) em coautoria com Arnaldo Xavier e Cuti. Também publicou um livro de ensaios, Brasilafro autorrevelado (2010), e a coletânea de contos Mulher Mat(r)iz (2011). Participou da coletânea de escritoras negras Olhos de Azeviche, e da coletânea A Escritora Afro-Brasileira, ativismo e arte literária. A autora integrou o movimento Quilombhoje Literatura, entre 1980 a 1989, publicou em Cadernos Negros, de 1982 a 2011, contos e poemas.
BARÁ – NA TRILHA DO VENTO | Miriam Alves
Editora: Ogum’s;
Tamanho: 211 págs.;
Lançamento: Novembro, 2015.