Nascido em Minas Gerais em 1916, Murilo Rubião produziu uma obra literária considerada a inauguração do gênero fantástico na literatura nacional de um modo peculiar. Antonio Candido, em seu ensaio “A nova narrativa” (2006), classificou o trabalho do autor mineiro como “insólito absurdo”, apurada definição que dá conta de demonstrar o que há de ímpar na construção do seu mágico.
Em comemoração ao centenário de vida do autor, a Companhia das Letras publicou, em 2016, uma edição especial com os 33 contos que compõem a obra completa de Murilo Rubião, oferecendo ao leitor brasileiro a oportunidade de entrar em contato com o pioneiro de uma escola literária própria.
O que difere os contos de Rubião de grande parte das produções do mesmo gênero é que neles o fantástico reside menos no acontecimento extraordinário em si do que na reação dos protagonistas e narradores em relação a ele. Há por parte das personagens murilianas um acolhimento quase natural do incomum nas situações apresentadas. Assim, por mais que Jadon, o protagonista de “Os comensais”, ache estranha a imobilidade silenciosa de seus companheiros de refeitório, diariamente dispostos nos mesmos lugares sem nunca trocarem sequer uma palavra ou gesto, ele não deixa de frequentar o restaurante dia após dia, ainda que ninguém o impeça de escolher outro destino.
Do mesmo modo, em “O bloqueio”, Gérion, único morador do prédio, vê desaparecer misteriosamente cada um dos andares do edifício e nele permanece, como que aguardando a chegada de sua própria eliminação. Impressiona essa adoção irrefletida e rendida do absurdo, o reconhecimento de que não há outra opção diante do anormal que não a aceitação. Nas historietas de Murilo Rubião, o insólito é abraçado, naturalizado e acrescentado ao convívio social como algo que o constitui inevitavelmente.
Devido à imersão irremediável ao universo mágico rubiano por parte do leitor, essa naturalização do absurdo acaba apoderando-se também de quem lê. Nos afeta mais a ineficiência, o fracasso do mágico, do que o mágico em si. A estruturação dos contos de Murilo desperta nos ledores a consciência de que o único caminho possível à essência do real é aquele que cruza a fantasia. Rubião estabelece o que fica conhecido como “lógica do absurdo” ao trazê-lo ao campo do prosaico. O fantástico do escritor mineiro não é coisa de outro mundo: ele faz parte do nosso.
Rubião estabelece o que fica conhecido como “lógica do absurdo” ao trazê-lo ao campo do prosaico. O fantástico do escritor mineiro não é coisa de outro mundo: ele faz parte do nosso.
Nesse sentido, sua obra garante uma atualidade incontestável através das alegorias fantásticas que propõe. A protagonista de “Bárbara” é uma mulher que “gostava apenas de pedir. Pedia e engordava”, representação mordaz da insaciabilidade moderna que impele os indivíduos ao acúmulo cada vez maior, sem obter satisfação duradoura com essa comilança.
De modo mais específico, alguns de seus contos foram pensados e escritos durante o período da ditadura militar brasileira e dialogam metaforicamente com a realidade repressiva do Brasil à época. Dessa forma, o autor esquivou-se da censura e converteu o fantástico no único gênero viável para compreender o absurdo do real vivido no país. É o caso, por exemplo, do conto “O Edíficio”, em que o progresso é tão desejado que inspira a construção de um imóvel com número de andares ilimitado, pela pura e ilógica ânsia de crescimento, remetendo à ideologia dominante capaz de tudo pelo suposto desenvolvimento da nação.
Muito embora Rubião tenha afirmado não conhecer Kafka antes de produzir seus textos, sua obra assemelha-se notavelmente à do autor tcheco. No conto “A cidade”, as semelhanças entre eles são ainda mais perceptíveis. Trata-se da narrativa de um homem que sem querer se vê em uma cidade desconhecida, condenado à prisão por algum crime que não sabe qual é. Assim como no conhecido livro kafkiano O Processo, o sujeito do conto de Murilo sofre as consequências da aceitação impensada do absurdo e é reconhecido como criminoso por testemunhas que, na verdade, jamais o viram.
Se o diálogo com Kafka não foi intencional, as influências de Edgar Allan Poe, Machado de Assis e Cervantes foram confirmadas pelo próprio Murilo Rubião, que dizia ter optado pelo fantástico como “herança de infância, das intermináveis leituras de contos de fadas, do Dom Quixote, da História Sagrada e das Mil e Uma Noites” (RUBIÃO, 1986, p. 4). Os contos de fadas (especialmente aqueles de origem alemã), as mitologias e os textos bíblicos impulsionaram Murilo à concepção de uma obra que, mesclando tudo isso, culminou no singular, no inédito, sem, contudo, negar as raízes plantadas na tradição. Esta é, na realidade, reafirmada em muitos dos contos pela seleção de epígrafes bíblicas que dialogam com o enredo inesperado subsequente.
O escritor mineiro debruçou-se incansavelmente sobre seus textos, lapidando-os inúmeras vezes até chegar às versões finais. Assim, é importante pensar o conto, gênero único de sua produção literária, como uma escolha consciente do autor. O formato do gênero exige uma contenção que torna mais profundo e íntegro o mergulho do leitor na narrativa, mais sólida e aceitável a presença do fantástico. Através da economia textual conquistada a duras penas, do aprimoramento estilístico e do cansativo exercício de traduzir em palavras concretas o nebuloso implicado pelo insólito, a literatura criada por Murilo Rubião convence qualquer um de que o absurdo é mais comum do que parece.
OBRA COMPLETA | Murilo Rubião
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 288 págs.;
Lançamento: Junho, 2016.