“Só queria lhe dizer que a admiro profundamente”. A sentença pertence a Jan, rapaz de 17 anos obcecado por escritores de ficção científica, que ao lado de Remo, um jovem poeta e aspirante a escritor, protagonizam O Espírito da Ficção Científica, romance inédito de Roberto Bolaño (1953 – 2003) e publicado somente no começo deste mês. Escrito em 1984, o livro foi revisado durante toda a vida do autor de Detetives Selvagens e já havia se tornado uma espécie de mitologia na bibliografia do chileno.
Assim como fez com 2666, sua obra-prima lançada um ano após a sua morte, Bolaño parece ter guardado O Espírito da Ficção Científica como uma carta na manga, um arremate final em sua obra. Tanto Jan quanto Remo, que mais tarde apareceria em Pista de Gelo, são arquétipos dos personagens que permeariam os escritos de Bolaño: idealistas, inconformados e literatos inveterados.
Ao contrário do amigo, Jan está mais interessado em manter correspondência com nomes célebres da ficção científica, escrevendo até mesmo para aqueles que jamais leu. Nessa atitude, um misto de pedantismo e ingenuidade, existe uma necessidade latente de, como Remo, fazer parte de um grupo. Ao mesmo tempo, nenhuma de suas cartas recebe resposta e não há quaisquer sinais de que chegaram ao destinatário ou de que foram realmente enviadas. Tudo está suspenso.
Remo está mais próximo de Arturo Belano, alter ego de Bolaño, ou de Ojo Silva, personagem do conto homônimo que abre Putas Assassinas, ou seja, um sujeito intelectualmente maduro. O romance deixa pistas também dos caminhos narrativos que o autor faria ao longo da vida: o quê de urgência e desespero dos personagens; o sexo como fuga para as angústias do dia a dia; e a estrutura inicialmente desconexa e confusa são, de maneira rápida, alguns exemplos.
Sem saber, O Espírito da Ficção Científica ajuda a sustentar o universo que seu criador conceberia anos mais tarde. Parte dessa base só é possível por a trama se passar na Cidade do México, como se todas as suas criaturas orbitassem e habitassem os mesmos perímetros.
O Espírito da Ficção Científica prega peças no leitor, desde seu título – já que não é nem de longe um sci-fi, ainda que Bolaño fosse um entusiasta do gênero e tivesse grande admiração por Philip K. Dick. Como sempre, tudo é muito sutil: há um turbilhão que leva tudo e a todos, mas o que realmente importa está escondido em algum lugar. O leitor, como deve saber de antemão, precisa procurar, escavar, no melhor tom detetivesco.
Metalinguagem
Bolaño sempre foi combatente dos cânones e, por coincidência, ironia ou apenas talento, tornou-se um. Sua literatura, como acontece com Vila-Matas e Piglia, sempre foi metalinguística e centrípeta, entrementes, ao contrário dos colegas, conseguiu expandir seu universo de leitores para além dos escritores.
Sem saber, O Espírito da Ficção Científica ajuda a sustentar o universo que seu criador conceberia anos mais tarde. Parte dessa base só é possível por a trama se passar na Cidade do México, como se todas as suas criaturas orbitassem e habitassem os mesmos perímetros. É possível imaginar Jan e Remo cruzando na rua com Belano, Ulises Lima, Padilla ou Amalfitano. São detalhes mínimos que, quem sabe, os afastem.
Os protagonistas encarnam os arroubos juvenis de Bolaño, talvez os arroubos mesmos que o colocaram em contato com a esquerda chilena e o fizeram viajar para o México e para a Espanha. Como grande parte do que concebeu, Roberto Bolaño escreveu O Espírito da Ficção Científica como quem luta em uma revolução.
O ESPÍRITO DA FICÇÃO CIENTÍFICA | Roberto Bolaño
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Eduardo Brandão;
Tamanho: 184 págs.;
Lançamento: Fevereiro, 2017.