Na HQ O Dobro de Cinco, primeira parte da trilogia Diomedes, criada por Lourenço Mutarelli no fim dos anos 1990, há um trecho em que uma mulher angustiada, ajoelhada no chão, esfrega insistentemente uma colher, pois diz haver ali uma mancha nojenta que não quer sair. O protagonista chega para ver o que está acontecendo e percebe que na verdade aquilo não é uma mancha, mas sim o reflexo da própria mulher.
O Grifo de Abdera, novo romance de Mutarelli, lançado pela editora Companhia das Letras, traz muito desta distorção metafórica de nossas percepções. O enredo não é dos mais simples: Mauro Tule Cornelli, o cara que nos conta a história, é um roteirista de quadrinhos que se uniu ao desenhista Paulo Schiavino com o objetivo de inventar um quadrinista chamado Lourenço Mutarelli. Para fazer essa ideia funcionar, eles contratam um bêbado de um boteco qualquer para se passar por um artista e ele então passa a frequentar os lançamentos literários, noites de autógrafos, viagens ao exterior, etc.
Após a morte de Paulo, Mauro resolve escrever um romance (O Cheiro do Ralo) que acaba fazendo muito sucesso, graças a sua adaptação cinematográfica. Mas os problemas começam de verdade a partir do momento em que Mauro ganha uma moeda esquisita, com o desenho do grifo do título, de uma pessoa desconhecida no metrô. Daí em diante, sua existência se desdobra em duas realidades e ele passa a perceber a vida também pelo olhos de Oliver Mulato, um professor de educação física medíocre que leva uma vida de merda.
Falei que o enredo era complicado, né (só não é muito original, já que nomes com José Saramago e Dostoiévski já escreveram sobre duplos e aí traçar algum tipo de comparação seria meio injusto)? Mas vai por mim, Lourenço Mutarelli, o escritor, não o personagem, faz essa zona aí funcionar de maneira razoavelmente clara. É evidente que estão ali as esquisitices habituais nos trabalhos do escritor, como, por exemplo, a mistura de crenças, referências nostálgicas, superstições e relíquias histórias.
É evidente que estão ali as esquisitices habituais nos trabalhos do escritor, como, por exemplo, a mistura de crenças, referências nostálgicas, superstições e relíquias histórias.
Pra se ter uma ideia do naipe das esquisitices, no meio do romance há uma HQ, que um dos personagens criou, baseada em fremes de filmes pornográficos antigos descontextualizados, mas nada explícitos, misturados a frases meio desconexas tão filosóficas quanto insanas, tudo isso para criar uma sensação perturbadora de pesadelo e loucura. Fora isso, o autor chegou a criar um perfil falso de Mauro no Facebook, cheio de fotos bizarras.
O livro ainda faz críticas diretas ao mundinho dos escritores e tenta desmistificar a profissão, como quando comenta que as pessoas ficaram putas da vida quando vários autores brasileiros viajaram para a Feira de Frankfurt à custa de dinheiro público, e que elas ficariam ainda mais indignadas se soubessem que alguns ali no meio não eram nem escritores, já que o bebum estava lá se fazendo passar por intelectual tupiniquim. Mas Mutarelli atira para todos os lados, pois, logo em seguida, o personagem diz achar curioso que uma viagem idêntica, custeada pelo governo, mas composta apenas de atletas, por exemplo, não geraria a mesma indignação.
A mistura de realidade e ficção surge aqui mais como um recurso narrativo do que como uma tentativa de discutir/explorar autoficção. Parece-me haver neste jogo de espelhos um interesse maior em contar a história do que em debater a forma/linguagem, mesmo que sua estrutura seja aparentemente complexa, cheia de referências e se apoie na metalinguagem, recurso bem manjado na literatura contemporânea. Mas, para além da composição rocambolesca do enredo, que pode tanto agradar aos fãs quanto afastar novos leitores, creio que o ponto alto do livro na verdade está nos diálogos, já que Mutarelli é exímio em capturar a oralidade e transportá-la para as páginas de modo que ela não pareça artificial (provável herança dos tempos de quadrinista).
O Grifo de Abdera é um romance tão imperfeito quanto não convencional. Mutarelli deixou os antidepressivos de lado, mas sua visão de mundo continua sombria e tortuosa. A sujeira, a feiura e o desencanto dos personagens dos quadrinhos ainda estão ali em seus labirintos mentais, expostos em cada linha do que ele escreve.
O GRIFO DE ABDERA | Lourenço Mutarelli
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 280 págs.;
Lançamento: Outubro, 2015.