Jorge Mautner sempre foi uma figura mítica na cultura brasileira: sempre presente, mas invisível. Suas músicas ecoam pelas vozes de parceiros e amigos. Sua poesia transita em silêncio em undergrounds. A Companhia das Letras ao lançar a coletânea Kaos Total (416 págs.) dá novo vigor à obra do carioca baiano, parceiro de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Nelson Jacobina – ao mesmo tempo em que celebra seus 75 anos.
Mautner é, parafraseando Raul Seixas, uma metamorfose ambulante. Seus versos são cheios de sincretismo religioso e político. “Filho predileto de Xangô”, “Urbe dracon” e “A Bandeira do meu Partido” são os textos que mais exemplificam as duas abordagens: indo do candomblé ao socialismo, dois temas delicados em uma sociedade polarizada – mas muito caros ao autor.
Kaos Total é explosivo já em sua abertura: uma coleção de detalhes de pinturas naif de Mautner, pinturas estas que permaneceram inéditas até agora. A organização do livro ficou a cargo de João Paulo Reyes e Maria Borba, curadores exigentes de um trabalho tão intenso. As pérolas são tantas, os encantos também. Ainda que Mautner seja um artista para artistas – como Vila-Matas é um escritor para escritores, por exemplo –, não é difícil entender essa admiração e respeito. “Desde que conheci Jorge Mautner, em Londres, chamo-o de mestre”, diz Caetano no livro.
Conhecer o seu trabalho é estar consciente da história cultural brasileira e da sua importância.
Mas o que mais chama a atenção do leitor, principalmente dos mais jovens, é a atemporalidade de Mautner. Como em “Maracatu Atômico”, música da década de 1970 mas imortalizada 20 anos mais tarde no manguebeat, o autor está internamente ligado a um futuro, a algo que não pode ser medido. É isso que dá sustentação à poética de Jorge Mautner, que permite a ele fazer todo sentido ainda hoje.
Filho do Holocausto
Jorge Mautner nasceu no Rio de Janeiro. Seus pais chegaram ao Brasil fugidos do terror que foi a caça aos judeus. Por isso, em nada surpreende que seus trabalhos sejam manifestos à sobrevivência. O seu primeiro livro, Deus da chuva e Deus da morte (1962), começou a ser escrito aos 15 anos. Com os dois livros seguintes, Kaos (1964) e Narciso em Tarde Cinza (1966), cria a trilogia chamada Mitologia do Kaos.
Não é difícil perceber que os fragmentos que encerram Kaos Total, e que parecem desconexos, estão ligados a um quê maior e mais denso, invisível a muitos. Conhecer o seu trabalho é estar consciente da história cultural brasileira e da sua importância. É impossível não celebrá-lo: “salve o nosso guia Jorge Mautner”.
KAOS TOTAL | Jorge Mautner
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 416 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2016.