Homens, animais e máquinas pontuam a obra do escritor português Gonçalo M. Tavares desde o seu primeiro livro, O Livro da dança, e de lá para cá – e passados mais de 30 livros – o autor se firma como um dos nomes lusófonos mais importantes da atualidade. “Um Kafka português”, disse o Le Figaro. Em Animalescos (Dublinense, 130 págs.), a relação entre o humano e inumano fica clara, escancarada.
Assim como Short Movies, Animalescos é uma colcha de retalhos de pequenas narrativas que se conectam ou não, criando um espelho surreal do mundo contemporâneos. Como de praxe, Gonçalo não se prende a gêneros literários e se joga nos bosques da ficção. Se em A Máquina de Joseph Walser os personagens são submissos à tecnologia, o mosaico criado em Animalescos é quase um pé de igualdade entre homem e máquina. “Há vários dos meus livros que eu diria que são muito animalescos — animalesco no sentido de sobrevivência, da guerra, da luta, do conflito”, definiu o escritor em entrevista ao jornal Rascunho (clique aqui para ler o bate-papo completo).
Os textos de Gonçalo são selvagens, como animais soltos na natureza. Ao mesmo tempo desafiam a construção narrativa convencional. Não é preciso encher os trabalhos de letras maiúsculas, pontuações e regras. Quem escreve é sempre a quarta pessoa do singular, como diz a epígrafe de Deleuze. Desde os títulos, os relatos se mostram improváveis – é como se o nome do conto fosse uma narrativa à parte. Tudo é literatura e nada o é. “Acho que o que me interessa é pensar numa espécie de espaço selvagem onde vários animeis diferentes são atirados”, nos revela na mesma entrevista.
Se cavalos podem ser personagens, martelos também. Se o zelador de um zoo cuida de seus animais, ele também pode matá-los. Esse é um livro de contradições e paradoxos possíveis. Em sua coleção O Bairro, Gonçalo usa escritores de carne e osso para criar um painel entre realidade e ficção, já em seu livro mais recente lançado no Brasil, Uma Menina Está Perdida no seu Século à Procura do Pai, o português faz da realidade literatura e, ao mesmo tempo, faz da literatura realidade.
Os textos de Gonçalo são selvagens, como animais soltos na natureza. Ao mesmo tempo desafiam a construção narrativa convencional.
Alegorias
Gonçalo M. Tavares é um autor de alegorias. Seus relatos – é difícil enquadrá-los somente como contos – são expressões máximas de um homem não se prende a uma única visão. São descrições esquizofrênicas de situações difusas. Ainda que não desmonte a técnica, mas não permita que a reza sobreviva, Tavares concebe um cenário distópico e amorfo, irreconhecível. É como se não houvesse paz ou como se a guerra fosse a única opção.
Ao contrário do que pregaria Defoe, somos nós, os “civilizados”, os verdadeiros Sextas-feiras. Animalescos é um livro – ou caderno, como prefere chamar – de leitura rápida, mas é quase impossível não voltar aos textos uma, duas ou três vezes. São alegorias que preenchem as páginas e vão cobrindo o leitor, carregando aquele corpo – que pode estar em uma cadeira, em uma confortável poltrona ou no chão – para uma verdadeira selva.
Gonçalo M. Tavares, assim como filósofo francês Edgar Morin, não acredita que o homem possa ter apenas um único caráter. Ele pode até ser racional e lógico, mas no fundo esconde uma demência natural e muito própria de si.
ANIMALESCOS | Gonçalo M. Tavares
Editora: Dublinense;
Tamanho: 128 págs.;
Lançamento: Maio, 2016.