Jorge Luis Borges (1899 – 1986) sempre foi um autor pouco compreendido na América Latina. Sua morte, que completou 30 anos na última terça-feira (14), fez do escritor argentino uma espécie de mártir tardio de seu país. No Brasil, o frisson pelo labiríntico portenho aconteceu nos 1970 e, novamente, a partir dos anos 2000. Por aqui, a Companhia das Letras tem se empenhado em verter ao português a obra borgeana.
Maria Kodama, sua viúva, desabafou recentemente em uma entrevista ao jornal El Claírn, de Buenos Aires: “acho que Borges só foi reconhecido em sua grandeza onde deve ser reconhecido”. O advérbio de lugar refere-se aos Estados Unidos e a alguns países da Europa. Ainda que Borges, ao lado de Cortázar, seja quase uma unanimidade ao se tratar de literatura argentina, está cada vez mais envolto em uma mitologia na qual foi colocado.
Na biografia de Edwin Williamson, Borges é menos a figura excêntrica e mais o homem solitário, dependente da mãe e interessado mais livros que em pessoas. A cegueira, doença herdada do pai, também ajudou trazer ao mundo um homem distante da figura real. Obviamente, ao perder a visão, o autor de Ficções passou a enxergar, literalmente, de outra maneira o que está ao seu redor.
Muitas Babéis
O imaginário borgeano é plenamente simbólico e interpretativo. Para Williamson, por exemplo, o zahir do conto homônimo de O Aleph, é uma metáfora para um amor perdido, na verdade, nunca conquistado. A biblioteca hexagonal, que tanto povoa os pensamentos dos leitores, é a materialização da fixação de Borges pelas enciclopédias – que também estão presentes e muitos relatos.
Tigres, adagas e o gaucho – não confundir com o nosso gaúcho – são, como o duplo, imagens constantes em seus livros. Quanto mais enfraquecida estava a sua visão, mas imagéticos se tornaram seus contos. O ápice de sua literatura foi entre as décadas de 1940 e 1950, justamente quando a cegueira se tornou mais acentuada.
É praticamente impossível não pensar em Borges como um escritor universal – em todos os sentidos.
Buenos Aires
De certa maneira, Buenos Aires respira Borges. Mas Borges não respirava apenas a capital argentina. Sua adolescência na Europa e sua maturidade dividida entre as aulas nos Estados Unidos – onde conheceu Kodama – e a Suíça – onde morreu e foi enterrado – dão uma ideia da desterritorialidade do escritor.
Ainda assim, Buenos Aires faz de Borges seu patrono. Do Café Tortoni à centenária livraria El Ateneo, na Avenida Santa Fé, do Centro Cultural Borges à rua Maipú: o escritor é onipresente. “A julgo tão eterna quanto a água e o ar”, afirma no poema “Fundação mítica de Buenos Aires”. E realmente assim o fez.
É praticamente impossível não pensar em Borges como um escritor universal – em todos os sentidos. Seu início literário foi com a poesia, em um movimento de poetas portenhos modernistas, depois descobriu a escrita da prosa por acidente – literalmente. Aos poucos, todos os seus pensamentos convergiram à literatura, seja como ensaio, como relato memorialístico ou como os volumes de contos.
O amor
Antes de conhecer Maria Kodama, Borges se casou com Elsa Astete. Em sua última entrevista, comentou que os três anos de casamento haviam sido muito onerosos. Parte desse desgaste veio, naturalmente, da relação do escritor com sua mãe. De acordo com o biógrafo, o autor de Fervor de Buenos Aires passou a noite de núpcias sem a esposa, na sua casa de solteiro.
Somente muitos anos mais tarde se casaria novamente. O relacionamento com Maria Kodama sempre foi conflituoso. Eles se conheceram durante as aulas do escritor em uma escola portenha e, segundo Williamson, Borges teria transferido à esposa a dependência que tinha da mãe, àquela altura já morta. Protetora da obra do marido, Kodama recentemente processou o escritor Pablo Pablo Katchadjian que, literalmente, engordou “O Aleph”.
Ironicamente, Jorge Luis Borges escreveu somente um conto declaradamente de amor, “Ulrica”, que abre O Livro de Areia, publicado já no fim de sua vida.