“Olha lá, a cara de satisfação de merda. Esse tipo de gente que fode todo o resto, querem se achar melhor que os outros porque têm um pouquinho mais de estudo. Vixe, Maria. Mas justiça há de ser feita. O mal do urubu é pensar que o boi morreu. O que é dele está bem guardado. Ah, se não está…”.
Dentre todos os parágrafos de O Próximo da Fila, primeiro romance de Henrique Rodrigues – macaco velho na escrita, tanto na literatura infantil como na juvenil, além de ter escrito um grande livro de poesias, A Musa Diluída (Record, 2006) -, escolhi este que ilustra o primeiro parágrafo deste texto por considerá-lo representativo na trama do livro.
O autor empresta sua própria experiência de vida enquanto adolescente, mas apenas como uma peça na engenharia de sua escrita, servindo mais como um laboratório do que definindo O Próximo da Fila como um romance de autoficção.
Rodrigues opta por não dar nomes nem aos personagens nem aos lugares. Dessa forma, fica evidente logo de início que a trama – e as infinitas mensagens escondidas nas entrelinhas da obra – são mais importantes que nomes, números e lugares, mesmo que, ao longo de O Próximo da Fila, consigamos dar nomes ao que é construído em forma de caracteres.
Chama a atenção neste trabalho de Rodrigues como o autor usa bem de sua experiência na poesia para construir metáforas tão precisas da classe média brasileira.
O romance se desenvolve entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990. Devido ao processo de reabertura política, um Brasil novo se confrontava com um Brasil antigo, colocando frente a frente conflitos sociais e econômicos. O personagem central da obra é, como tantos outros brasileiros, um jovem adolescente de classe média que, ao perder o pai, se vê diante de um mundo que até outro dia não lhe parecia real.
Ele precisa então ir à luta, conseguir um emprego e ajudar sua mãe, que em virtude da morte do marido vê seu futuro encontrar um passado amargo, doloroso, que começa a fazer as cicatrizes do abismo de realidades do país lhe coçarem a pele. A porta de entrada nessa nova realidade para o personagem central de O Próximo da Fila é “aquela rede de fast-food famosa, dos arcos dourados”, e por meio dela Henrique Rodrigues desenvolve uma interessante trama que se conecta em vários níveis com o leitor.
Chama a atenção neste trabalho de Rodrigues como o autor usa bem de sua experiência na poesia para construir metáforas tão precisas da classe média brasileira. Aos que reclamam – e com razão – da quase inexistente representatividade nos diferentes perfis do povo brasileiro em nossa literatura contemporânea, aqui vemos um personagem central pardo, pobre, filho de uma empregada doméstica e que, em nenhum momento, se vitimiza. Pelo contrário. Ele justamente é questionado, como no parágrafo que inicia esta análise, pelo fato de lutar por um mundo além das caixas de “carne 100% bovina”.
Chuck Palahniuk usou Clube da Luta como uma metáfora para criticar inúmeros aspectos de nossas vidas, sobre o que somos e fazemos. Enquanto Palahniuk diz “Você se sente como um desses macacos do espaço que só fazem aquilo que são treinados para fazer”, Rodrigues coloca seu personagem traçando o infinito com um esfregão no salão da rede de lanchonetes. Enquanto Palahniuk critica a sociedade de consumo – “Você não é o seu emprego” -, Rodrigues constrói uma redoma na qual seu personagem central sofre as marcas dessa mesma sociedade na pele e acaba marcado tal qual um boi – e temos aqui, com a cena da chapa, uma das mais interessantes e cruéis da literatura contemporânea.
Ao final, somos sugados para dentro da obra, e enxergamos a fundo esse mundo que parece ao contrário. Mas, antes que percebamos, já somos o próximo da fila.
O PRÓXIMO DA FILA | Henrique Rodrigues
Editora: Record;
Tamanho: 192 págs.;
Lançamento: Julho, 2015.
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