Ok, não vou enrolar você, vamos direto para a informação que provavelmente te fez abrir o link desse texto: sim, o livro escrito por Emma Donoghue é melhor que o filme indicado ao Oscar desse ano. “Ah, mas cinema e literatura são linguagens diferentes, não tem comparação, etc”. Meu amigo, trata-se de um livro que foi adaptado para o cinema com roteiro da própria autora. Fora isso, a famosa premiação conta com uma categoria chamada “melhor roteiro adaptado”, então, sim, dá para comparar.
Pois bem, agora que botamos o elefante branco ali no cantinho, vamos lá tentar entender o porquê do óbvio ululante.
Emma Donoghue é uma escritora irlandesa, autora de vários romances, coletâneas de contos e peças de teatro. Quarto, lançado pela Verus Editora, com tradução de Vera Ribeiro, é o seu único trabalho lançado aqui no Brasil até o momento. O livro é de 2010 e fez certo barulho na época do lançamento, pois foi finalista Booker Prize. Mas só acabou ganhando o mundo mesmo agora com o lançamento do filme estrelado pela ganhadora do Oscar de melhor atriz, Brie Larson, e pelo surpreendente&fofo Jacob Tremblay.
A história chama a atenção pelo enredo sinistro: um psicopata sequestra uma jovem e a mantém em cativeiro num quarto minúsculos durante vários anos. Durante este período ele a estupra diariamente e ela acaba engravidando. O livro é sobre essa mulher se tornando mãe e criando uma criança nessas condições insanas.
A história chama a atenção pelo enredo sinistro: um psicopata sequestra uma jovem e a mantém em cativeiro num quarto minúsculos durante vários anos.
Embora haja muitas semelhanças no enredo, o livro se diferencia do filme por ser mais pesado em sua primeira metade e por um fator determinante: a história toda é narrada através do ponto de vista de Jack, uma criança de 5 anos. O que temos, portanto, é um horror inimaginável sendo filtrado pelos olhos inocentes de alguém cujo mundo se resume a poucos metros quadrados.
A autora tem o mérito de conseguir dar dinamismo a uma narrativa que se passa num espaço ridículo de tão pequeno. O clima claustrofóbico é absolutamente angustiante e só é parcialmente compensado graças à imaginação e à inteligência de Jack. O que ficou de fora da versão cinematográfica foi todo o processo de educação do menino, os detalhes das visitas perturbadoras do algoz, além das soluções que a mãe encontra para tentar fazer com que suas vidas tenham o mínimo de normalidade.
Como acessamos aquele inferno pelos olhos de Jack, o livro é todo narrado num linguagem infantil. Ele é muito inteligente para a sua idade, mas mesmo assim podemos perceber as limitações de vocabulário e as dificuldades com os tempos verbais. Esse é o grande trunfo de Donoghue, pois caso a história fosse contada de outra forma, por um narrador em terceira pessoa, por exemplo, provavelmente o livro não teria tanto impacto.
É por causa da perspectiva inocente do garoto que nos deparamos como momentos tão poéticos quanto filosóficos, como quando ele descobre que algumas coisas da tv são reais e se questiona se ele e sua mãe de fato existem, pois estão num lugar ondem ninguém os vê. As noções de liberdade são amplamente questionadas, pois como Jack não conhece o mundo “real”, não vê necessidade ou nem teria capacidade de desejar algo para além daquelas paredes. Ele tem a sua mãe e isso é o suficiente, então o lado de fora (seja lá o que “fora” represente, pois sempre dependerá de uma perspectiva subjetiva) parece todo feito de uma imensidão vazia e assustadora.
Embora a segunda metade do livro seja surpreendente, pois o clímax ocorre muito antes do final e aí você fica se perguntando o que mais há para contar sobre aquilo tudo, o livro cai um pouco de rendimento e se arrasta até o fim. É quase como se tivéssemos duas obras distintas: uma sobre o horror do cativeiro e outra com uma pegada meio Tarzan. As duas se complementam, é claro, já que abrem a possibilidade de mostrar o menino enxergando a vida com diferentes perspectivas, mas me parece que a força da narrativa se perde muito nesse processo.
De todo modo, Quarto é uma experiência literária interessante do ponto de vista técnico e dilacerante do ponto de vista emocional. Vale a leitura.