Na conturbada semana que passou, a grande autora polonesa Olga Tokarczuk foi laureada com o Man Booker International Prize de 2018 pelo livro Os Vagantes (Bieguni, no original; tradução de Tomasz Barcinski, publicado pela editora Tinta Negra em 2014). Em nossas terras, a autora segue desconhecida e o livro causou pouco alvoroço. Trata-se de um livro desafiador e bastante complexo. Aventurar-se por ele é, de resto como em todos os livros de Tokarczuk, uma profunda viagem (nos vários sentidos da palavra).
Gostaria de apresentar algumas observações sobre este livro de elevada qualidade e que passou despercebido pelo público brasileiro.
Comecemos pelo título. Bieguni é uma palavra portadora de vários sentidos. Sua raiz traz a ideia de “correr” (biec, biegać, em polonês). Podemos, também, associá-la ao termo biegun (polo, como em “polo norte”) e, em usos mais antigos, biegun poderia significar “rebelde” ou, ainda, “fugitivo”. A mesma palavra também pode ser usada para um cavalo muito veloz e, por fim, a uma seita russa histórica (ao contrário do que afirma a resenha publicada no jornal Folha de São Paulo), em português conhecida como “os velhos crentes” (personagens mais ou menos frequentes na literatura russa, inclusive no nome de Raskólnikov de Crime e Castigo).
Em Os Vagantes, a escrita de Tokarczuk é recortada, preenchida por silêncios e vazios, precisando ser reconstruída no ato da leitura.
Lidamos com um livro tensionado entre muitas dualidades: o movimento e a estabilidade, o passado e o presente, a água e a terra, a vida e a morte.
Em se tratando da forma, parece haver diálogo com aquilo que, na historiografia literária polonesa, costuma-se chamar silva rerum (floresta das coisas). Este gênero literário, comum especialmente nos séculos XVI e XVII, caracterizava-se por uma espécie de patchwork literário, onde podemos encontrar desde notas sobre nascimento, morte, batizado e, até mesmo, profundas reflexões filosóficas.
O leitor de Os Vagantes terá nas mãos um verdadeiro quebra-cabeças: há uma série de passagens ou trechos aparentemente desconexos entre si, uma prosa verdadeiramente labiríntica (não sem razão, o nome do grande escritor argentino Jorge Luís Borges aparece duas vezes), cabendo ao leitor reconstruir (ou encontrar) a narrativa, tal como se faz em um álbum de fotografias. Porém, Tokarczuk não dá a possibilidade de jogo, não da maneira que o fazem, por exemplo, Julio Cortázar, em O Jogo da Amarelinha, ou Milorad Pavić, em O Dicionário Kazar. O jogo de Tokarczuk impõe regras mais rígidas: é preciso seguir uma leitura linear, vagar por todas as passagens, desde a primeira até a última.
Por conta de sua estrutura entrecortada, é difícil definir aquele que seja o tema central de Os Vagantes. Porém, lidamos com um livro tensionado entre muitas dualidades: o movimento e a estabilidade, o passado e o presente, a água e a terra, a vida e a morte.
Lendo Os Vagantes, poderemos pensar que a impermanência é a essência não apenas do humano, mas de todas as coisas. O mundo, a vida e a natureza estão sempre a se criar, a tornar-se algo diferente, a transformar-se.
Se a vida é movimento, a descrição daquilo que é móvel aprisiona a vida, impede-a de mover-se, torna-a, enfim, morte. É o que podemos pensar quando lemos trechos fantásticos como o verdadeiro libelo contra as descrições de guias turísticos: “a verdade é horrível: descrever é destruir” (p. 69); ou ainda: “as cores vão perdendo a nitidez, os cantos se embotam e, por fim, tudo que foi descrito começa a desbotar, a desvanecer” (p. 68).
O movimento também está presente naquilo a que o título polonês nos remete: a seita radical russa que surge no século XVI e que se caracterizará por um estilo de vida algo semelhante ao nomadismo.
Na passagem “O que dizia a enroupada sectária dos bieguni” é feito um louvor ao movimento, tornando a imobilidade a arma dos tiranos para aprisionar os homens livres, conspurcar suas almas. O mundo moderno, porém, não comporta mais o nomadismo – ele cresceu demais e “há um excesso de mundo no mundo” (p. 59). Se a antiga seita russa afastava seus fiéis da “civilização”, a viagem, considerada por Tokarczuk “a maior aproximação àquilo que o mundo contemporâneo parece ser – movimento, instabilidade” (p. 172), é nossa última alternativa.
O tema da viagem é constante na obra de Tokarczuk. Seu primeiro livro, publicado em 1993, chamava-se, precisamente, A viagem do povo do livro (Podróż Ludzi Księgi, no original polonês).
Mas que viagens são estas?
Arrisco a ler como viagem em busca do sentido, do sentido profundo do homem e do universo. Uma pista neste sentido é dada em Os Vagantes, quando a autora nos recorda de que, em 1542, são publicadas duas obras importantíssimas: De revolutionibus orbium coelesteum, de Copérnico, e De humani corporis fabrica, tratado do anatomista Vesalius.
O corpo humano e a anatomia também são temas que Tokarczuk traz a seu livro. O corpo é uma armadilha em que estamos presos (cf. p. 6). E uma armadilha misteriosa, cheia de surpresas. Certamente os anatomistas ficaram surpresos quando descobriram o tendão de Aquiles (o trecho dedicado a este tema parece ser uma belíssima écfrase do quadro “A aula de Anatomia do Prof. Frederick Ruysch”, do pintor holandês Adriaen Backer).
Já me alongo demais, mas a tarefa de apresentar um livro tão excepcionalmente bom e complexo é difícil. Só me resta sugerir a todos que embarquem na viagem que Olga Tokarczuk nos propõe. Não há risco de bad trip.
OS VAGANTES | Olga Tokarczuk
Editora: Tinta Negra;
Tradução: Tomasz Barcinski;
Tamanho: 384 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2014.