Para um artista muito famoso, esse papo de morrer e finalmente “descansar em paz” não funciona muito bem, pois sempre haverá familiares, amigos, colegas, empresários, parceiros, vizinhos, porteiros e outros que sempre encontrarão uma migalha de algo “inédito”, uma gravação obscura, um VHS embolorado, uma anotação em guardanapo, uma impressão digital, um papel higiênico usado, um resto de comida no prato que, nossa senhora, precisa muito vir a público para o bem da humanidade. O livro Só Por Hoje e Para Sempre, lançado este mês pela Companhia das Letras, entra nessa listinha.
A obra é composta pelo diário e por alguns exercícios de autoconhecimento que Renato Russo escreveu durante o tempo em que ficou internado numa clínica de reabilitação. Existem algumas formas bem diferentes de lermos tudo isso:
1) Como fã incondicional da Legião Urbana: para aqueles que se orgulham de saber de cor não só a letra de Faroeste Caboclo (isso é para os fracos), mas também a letra de Metal Contra as Nuvens, o diário de Renato Russo pode significar mais uma possibilidade de decifrar aquele que foi o maior poeta do rock nacional (embora os fãs de Cazuza discordem). De brinde, o fã ainda pode encontrar diversas frases que posteriormente vieram a fazer parte das letras de músicas bem famosas.
2) Como leitor da Revista Caras: Para estes exigentes leitores, o diário de Renato Russo é a oportunidade de fuxicar sobre a vida dos famosos e se deparar com informações bem relevantes, como a paixão platônica do cantor por Dado Villa-Lobos, um jantar chique na casa da Regina Casé ou uma crítica ao Domingão do Faustão. Fora isso, dá para se esbaldar com momentos como, por exemplo, aquele em que o cantor reclama porque tem carne todo dia na clínica e ele preferia comer caviar.
3) Como fã do Datena: ao expor sua própria degradação, o vocalista pode atingir em cheio aqueles urubus que adoram ver o que há de pior na humanidade. Tem bastante consumo de drogas, barracos e sangue.
4) Como deprimido e/ou dependente químico: os diários também podem servir como um manual de autoajuda, em que Renato Russo destrincha e expõe toda a sua derrocada física e psíquica de modo que a partir da desgraça alheia, com frases de efeito, poderemos nos identificar e encontrar o caminho da direção contrária, a luz no fim do túnel, o arco-íris, etc.
5) Como religioso: Dá até para imaginar um líder espiritual repetindo a mesma frase que Renato Russo escreve no diário: “A única saída para o alcoólatra é o caminho espiritual”.
É difícil avaliar este livro do ponto de vista literário, já que não se trata de ficção ou mesmo de algo lançado pelo autor em vida, então qualquer crítica poderia erroneamente ser encarada como uma forma de desmerecer o artista. A profusão de lugares-comuns ao longo do texto seriam bem problemáticos num romance, por exemplo, mas aqui acaba sendo uma forma de mostrar uma das facetas do cantor. Então não é exatamente o caso de criticar Renato Russo, uma vez que seu talento é mais do que reconhecido. Já que transformam suas anotações em livro e o colocam para circular, ele deve ser analisado sem nos deixarmos ofuscar muito pela aura do artista.
É difícil avaliar este livro do ponto de vista literário, já que não se trata de ficção ou mesmo de algo lançado pelo autor em vida, então qualquer crítica poderia erroneamente ser encarada como uma forma de desmerecer o artista.
Após várias entrevistas, livros e filmes, a figura controversa de Renato Russo já era mais do que conhecida. Temos um dos maiores gênios da música nacional que, em sua intimidade, sofria imensamente com a depressão e o consumo de drogas, expondo assim uma persona divertida, mas também insegura, arrogante e muitas vezes pedante. O próprio cantor tem consciência disso e expõe várias vezes a insatisfação consigo mesmo por agir por tanto tempo desta forma. O que nos leva a questionar qual a necessidade real de ligar a vida pessoal à obra do artista? Gostaríamos menos de discos como O Descobrimento do Brasil só porque às vezes o líder da banda era um babaca?
De modo geral, o livro não traz nada de muito relevante ou que seja realmente uma novidade. Embora possua trechos curiosos, meio que no estilo Trainspotting, principalmente no momento dos exercícios de autoconhecimento praticados na clínica, com algumas histórias da vida louca que ele levou, o que toma boa parte do livro é o diário dos dias em que ele estava lá na clínica, e isso é um tanto enfadonho. São páginas e páginas de “hoje acordei bem, assisti a uma palestra que não gostei…”, “hoje acordei ansioso e não prestei atenção na palestra…”, etc, seja lá o que for que discutiram nessas palestras. São trechos muito chatos que desafiam a paciência de quem não é tão fã assim.
Entre ler um livro como esse para “desmistificar” a figura de um astro do rock ou não ler nada e apenas guardar a memória das músicas incríveis que embalaram a sua adolescência, sugiro que você fique com a segunda opção. E só com ela.
SÓ POR HOJE E PARA SEMPRE | Renato Russo
Editora: Companhia das Letras;
Tamanho: 200 págs.;
Lançamento: Julho, 2015.
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