O livro de estreia da curitibana Verginia Grando fala sobre uma escritora que recebeu o telefonema de uma editora que talvez esteja interessada em publicar o seu livro. Ela terá que aguardar uma semana para finalmente receber a notícia tão esperada e nesse meio tempo vai viver experiências e rememorar lembranças que a transformarão não apenas como autora.
Dia desses, o escritor Sérgio Sant’Anna escreveu um artigo falando sobre como há tanta gente escrevendo no Brasil que até parece que temos mais escritores que leitores. É como se os autores escrevessem pensando em seus colegas e os leitores já lessem pensando em suas próprias obras. Desta relação antropofágica surgem obras como Se nada mais der certo eu não tenho plano B, lançado pela editora Arte e Letra: um livro sobre uma escritora esperando ser publicada que provavelmente será lido por escritores que também guardam seus sonhos numa gaveta.
Para além desse mundinho em que as pessoas estilosas sofrem com uísque na mão enquanto aguardam o telefone vintage tocar com uma proposta de uma grande editora, Grando parece querer abraçar algo maior: fazer com que seu livro vá além e também converse com quem está pouco se fodendo para o mercado literário ou pro ego ferido dos gênios ainda não publicados.
É aí que a autora esmigalha o tempo e o espaço, e o faz com certa precisão. O calendário que marca a semana que falta para a reunião que poderá mudar a vida da personagem vai se diluindo e perdendo a sua importância entre as idas e vindas ao passado e ao interior da própria personagem. Verginia controla com muita precisão este aspecto técnico e só derrapa quanto enfia alguns aforismo ou reflexões meio constrangedores no meio da narrativa, para mesclar com uma voz em primeira pessoa.
O escritor Sérgio Sant’Anna escreveu um artigo falando sobre como há tanta gente escrevendo no Brasil que até parece que temos mais escritores que leitores. É como se os autores escrevessem pensando em seus colegas e os leitores já lessem pensando em suas próprias obras.
O recurso não funciona e aos poucos vai se tornando cada vez mais desnecessário, como por exemplo no trecho: “Enrola-se na toalha e caminha até o espelho, ‘será possível que a mesma neblina que não me deixa ver meu reflexo no espelho sumiu com a cidade lá fora?’. Veste a camiseta novamente e vai para a cozinha”. A tentativa é mostrar que a personagem é profunda, que tem uma percepção poética das coisas do cotidiano, etc, mas quando isso é usado à exaustão, fica parecendo apenas que a personagem é uma daquelas pedantes armadas com um moleskine nas Starbucks da vida.
Outro exemplo: “está viva; sente uma felicidade quase infantil em ter consciência disso. ‘A morte nos força à sutil batalha diária de no tornarmos eternos em vida’, vai até a janela e olha pra baixo”. Percebe o ruído? É como se você estivesse lendo de boa e aí seu tio chato com voz do Cid Moreira interrompesse sua concentração pra fazer citações filosóficas. Isso acontece no livro inteiro.
Por outro lado, quando a autora evita a afetação, consegue desenvolver momentos bastantes singelos em que a poesia não parece surgir de maneira forçada: “Sou fruto de um casamento fracassado que não conseguiu achar o seu caminho entre as raízes e o ar: que cresceu para dentro da terra, mas que na luz do sol se deixou queimar demais e morreu. Vi a falta de brilho nos olhos da minha mãe pouco antes de ela morrer. Vejo, ainda hoje, o espinho que ficou cravado no coração do meu pai no dia em que minha mãe arrumou as mala e decidiu abandoná-lo porque ele já não era mais suficiente para ela: ‘Quero muito do mundo e só você e essa cidade não me bastam’, minha mãe berrava e ele chorava. E enquanto tudo isso ia acontecia em minha casa, com você e em você, eu descobria o toque suave da pele de uma mulher, o beijo delicado, o caminho para um amor possível de acontecer entre o sim e o não; entre o mundo e o espaço criado entre nossos corpos”.
Perceba que a autora vai da desestrutura familiar à homossexualidade, dois temas importantes, num só parágrafo. É um bom trecho.
Aqui também reside uma questão importante sobre Se nada mais der certo eu não tenho plano B: um profundo desejo de dar conta de toda a vida num curto espaço de tempo e de páginas. No fundo, nada é desenvolvido a contento e os temas que são caros à protagonista vão sendo apresentados e largados pelo meio do caminho. Isso pode tanto ser uma representação da própria desordem da vida da personagem, com lacunas que ficarão a cargo do leitor, quanto superficialidade da narrativa mesmo. Esta é uma questão relevante, pois é necessário acreditar no impacto que a presença dessas pessoas causou na vida da escritora, para que seja possível acreditar em seu desenvolvimento, suas mudanças, etc.
A verossimilhança funciona muito mais quando temos a narração, uma vez que Verginia Grando manda bem nas descrições psicológicas mesmo quando ela são muito didáticas e explicam o que leitor deveria interpretar por conta própria, do que quando temos algum diálogo, pois quando os personagens resolvem falar, às vezes soam muito artificiais, do tipo: “- Eu estava desenhando teus detalhes dentro de mim e desejando que o teu ar nunca acabe”. Nossa, muito bonito, mas quem diabos fala assim? Quando você não acredita no que o personagem diz, pois aquilo parece mais um e-mail escrito por um bêbado pseudo poeta às 4h da manhã, toda a construção da cena fica comprometida, você expulsa o leitor da história, então uma coisa que eu aconselharia a todos os escritores novatos é: caras, evitem diálogos cagados, não botem literatura/filosofia na boca dos personagens, pois sempre vai soar falso a não ser que você seja o Shakespeare.
O livro se torna muito maior quando Verginia consegue trazer serenidade para a narrativa, de modo a nos apresentar uma percepção bastante sóbria daquelas existências. Ela tem uma interpretação muito interessante das relações humanas e as descreve de maneira bastante singela: “seus corpos eram o mais próximo que podiam chegar de um lar e então se encantaram: um pela solidão do outro. O único tipo de paixão suicida que existe, aquela capaz de durar uma vida inteira”.
O que torna o trabalho de Verginia Grando interessante mesmo com os problemas apresentados, comuns em livros de autores iniciantes, é a delicadeza de seu olhar, da sua visão de mundo e a forma como ela tenta traduzi-lo em palavras, bem como o seu interesse em tocar nos grandes temas. Percebe-se claramente o potencial de uma voz narrativa que pode se tornar poderosa, assim que as arestas da forma, da linguagem foram aparadas. Há ainda certo caminho pela frente, mas ele nem é tão longo assim.
SE NADA MAIS DER CERTO EU NÃO TENHO PLANO B | Verginia Grando
Editora: Arte e Letra;
Tamanho: 126 págs.;
Lançamento: Dezembro, 2016.