Para onde vai o jornalismo? Se depender do olhar do pensador Umberto Eco, para o fundo do poço. É esta a visão sedimentada pelo romance Número Zero (editora Record), a mais recente obra ficcional lançada pelo famoso pesquisador, professor e semioticista – cuja carreira enquanto escritor de ficção alcançou o ápice justamente com a obra de estreia, O Nome da Rosa, de 1980. Em Número Zero, Eco desenvolve uma narrativa que busca ilustrar as ideias que têm feito circular nos últimos anos, ao declarar, por exemplo, que as mídias sociais dão voz a legiões de imbecis, e que os jornalistas sérios estão escasseando no mercado.
A trama de Número Zero – que se situa em uma zona entre o romance, a novela e o ensaio – é um tanto simples. Uma equipe é chamada para montar um jornal, Amanhã (cujo slogan é genial: “Amanhã: ontem”), criado por um comendador um tanto obscuro com objetivos igualmente escusos: difamar pessoas por meio de dossiês montados e notícias falsas. A história é contada pelo repórter Colonna, um jornalista meio desprestigiado que se une a colegas que, igualmente, não chegaram a triunfar na profissão e não veem outra oportunidade melhor do que ingressar nesta empreitada.
O tom predominante é o da ironia: todos são postos sob uma teia velada de humor, desde os jornalistas que se levam a sério (como Maia, a repórter cansada de falar de casamentos e divórcios de celebridades) aos que abertamente querem tirar uma lasquinha de uma instituição em decadência. Mesmo os que têm motivações mais sérias e atreladas aos princípios do jornalismo são vistos com jocosidade: Umberto Eco ri dos repórteres que, em busca de certa proeminência, caçam conspirações em todos os lugares. A intriga central – que peca ao ser desenvolvida em uma longuíssima digressão histórica trazida pela visão de um personagem –, que não chega a ser efetivamente resolvida, gira em torno da teoria de que Mussolini não teria morrido na Segunda Guerra. Sua morte teria sido forjada por meio de um sósia, em uma trama que envolveria vários setores da política e do Vaticano.
Como ensaio, Número Zero faz jus à perspicácia da maior parte da obra de Umberto Eco e do quanto suas ideias foram (e são) pertinentes para que se compreenda melhor os processos da comunicação.
Como ensaio, Número Zero faz jus à perspicácia da maior parte da obra de Umberto Eco e do quanto suas ideias foram (e são) pertinentes para que se compreenda melhor os processos da comunicação. Suas considerações acerca da evolução das mídias, bem como suas consequências, são sempre contundentes e, arriscaria dizer, divertidas – Eco é um exímio mestre do “saber com sabor”, como dizia Roland Barthes, reivindicando o prazer que proveria do conhecimento científico. Suas análises, mesmo em obras densas de semiótica e linguística, são sempre carregadas de um humor que torna a leitura aprazível.
Em um momento histórico em que o jornalismo é visto com certo cinismo, suas reflexões são, no mínimo, instigantes. Elas vão desde sacadas simples, mas espirituosas (quando um personagem reflete que “agora a gente fica sabendo das notícias do dia anterior pela televisão às oito da noite, portanto os jornais estão contando sempre as coisas que a gente já sabe, e é por isso que vendem cada vez menos”) a denúncias pertinentes e que condizem com o ambiente regido pela onipresença das mídias sociais (quando aponta os mecanismos que os jornalistas têm para criar suspeitas acerca de pessoas, sem necessariamente mentir, e o quanto as intrigas se espalham, restando ao acusado a obrigatoriedade de ter que provar o contrário).
A absoluta pertinência do ensaio de Umberto Eco em Número Zero, por outro lado, é também sua fraqueza: enquanto romance, a obra é um tanto maçante e a história parece um pouco uma desculpa para que o autor possa proferir uma de suas aulas brilhantes. Os personagens, de modo geral, são pouco envolventes e mais operam como justificativa e plataforma para as considerações do autor sobre o jornalismo.
Ou seja, enquanto ensaísta, Umberto Eco continua sendo Umberto Eco. Como romancista, dá saudade do autor em O Nome da Rosa, cuja trama medieval casava, de forma magnífica, o tom erudito com o ritmo esperado ao texto policial. Talvez valesse a pena ter ficado só com a aula.
NÚMERO ZERO | Umberto Eco
Editora: Record;
Tradução: Ivone Benedetti;
Tamanho: 208 págs.;
Lançamento: Junho, 2015.
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