Os poemas de Viagem a um Deserto Interior (Ateliê Editorial, 2015), de Leila Guenther, indicam uma peregrinação em torno de si. A viagem é uma jornada solitária, que atravessa o vazio da contemplação zen-budista e o desespero niilista ocidental para chegar à aceitação da individualidade.
O livro é dividido em cinco partes: “Paisagens de Dentro”, “O Deserto Alheio”, “Castelo de Areia”, “Um Jardim de Pedra” e “A Possibilidade do Oásis”. Cada uma está relacionada a um tema contemporâneo: solidão e o imaginário, o Outro ou estrangeiro, o estranhamento do cotidiano, o zen-budismo e amor. As ilustrações de Paulo Sayeg dialogam com os poemas.
As citações da cultura japonesa – os haicais, o jardim zen, as obras e autores – são máscaras. Esta viagem intimista percorre o itinerário da solidão quando o afeto se vai:
CIMENTO
“Todas as fotos sumiram.
Seu rosto se desfez
como um muro aos poucos encoberto pelo musgo,
um muro cada vez mais rabiscado,
que vai perdendo a pintura,
até desabar com os anos de chuva e descuido
e deixar entrever a casa abandonada.
Uma foto apenas
quase derruída
sobre o meu
enquanto desaparecíamos.
Penso se o cachorro,
aquele cão que se perdeu na mudança,
hoje também se lembraria de seu rosto futuro
reside em algum lugar de mim
tornado árido e áspero.
Um instantâneo
onde seu rosto se debruçava”
A herança tatuada na pele persiste no ícone do quimono, que ao mesmo tempo abriga e delineia a diferença entre o corpo oriental e o corpo ocidental.
A dor conduz a terras remotas. Antes de chegar à raiz, é preciso, mais uma vez, rememorar outro inferno, onde ardem os hibakusha (vítimas de bombas nucleares). A citação é um pretexto para falar de uma cicatriz ainda viva na memória dos herdeiros da diáspora japonesa:
“Não ouve falar da claridade, não sente seu cheiro, não a enxerga
(Nunca uma luz foi tão escura)
Dela só guarda sobre a pele
o desenho da flor do quimono
que o fogo imprimiu”
Nesta viagem, ela se descobre nômade, habitante do não-lugar, ou entre-lugar: a de uma identidade flutuante, entre duas culturas, empática com a precariedade dos sem-teto:
LESS
“Nunca tive um lugar que fosse meu.
O que tenho são mochilas, caixas de papelão, objetos descartáveis usados inúmeras vezes
Me resguardo atrás das paredes frágeis de embalagens e sacolas de plástico.
Quando acordo, durante a noite, é sempre em outro lugar.
Um dia, a porta fica à direita; no outro, a cama é estreita. Ás vezes esbarro em objetos que surgem do vazio.”
A herança tatuada na pele persiste no ícone do quimono, que ao mesmo tempo abriga e delineia a diferença entre o corpo oriental e o corpo ocidental. Objetos que compunham o legado, perdem-se, ou transmutam-se, na travessia do deserto:
DO MEU LIVRO DE TRAVESSEIRO
“Lembranças que perdemos: um quimono bordado pelo bisavô com linhas de seda que ele próprio tingiu. Na altura da nuca, o símbolo da família, em lilás, que eu gostaria de ter tatuado para não me esquecer como era. Da bisavó, um andor em miniatura, sobre o qual um pequenino casal de madeira se equilibrava. A caneta-tinteiro do avô que buscava a perfeição dos kanjis. O caderno de receitas da avó, escrito no português todo peculiar que ela inventou.”
No fim da viagem se entende que o espírito nômade e solitário pertence ao mundo. Não é preciso pertencer a alguém :
“’Não ser de ninguém’
alegra-se a cabeça que
o carrasco cortou”
Leila Guenther é formada em Letras pela Universidade de São Paulo e autora do livro de contos O Vôo Noturno das Galinhas (Ateliê Editorial), traduzido para o espanhol (Borrador Editores) e publicado também em Portugal, e Este lado para cima (Sereia Ca(n)tadora, Revista Babel). Participou de antologias de contos e poesia. Para os palcos de Robert Wilson, adaptou a peça A dama do mar, de Susan Sontag (N-1 Publications), baseada em Ibsen, e traduziu A velha, adaptação de Darryl Pinckney para uma novela de Daniil Kharms.
[box type=”info” align=”” class=”” width=””]VIAGEM A UM DESERTO INTERIOR | Leila Guenther
Editora: Ateliê Editorial;
Tamanho: 152 págs.;
Lançamento: Janeiro, 2015.
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