Tentar firmar gêneros musicais, artistas ou obras como definidores de uma geração é sempre uma tarefa de risco – é fácil cair nos clichês ou ceder à pretensão. Mas, mesmo assim, parece seguro afirmar que o rap é o gênero musical mainstream mais relevante da década. Isso graças a uma soma de fatores, sendo os principais, além do desempenho comercial, a aliança entre forma e conteúdo. Entenda forma como a música em si (produção, criatividade, etc.) e conteúdo, bem, esse é auto-explicativo.
Até os anos 90, o rock era o gênero musical do qual mais surgiam ideias musicais novas, novos subgêneros e o que melhor dialogava com os desejos e angústias de toda uma geração – o que o ajudava a manter-se no mainstream.
O choque geracional e as incertezas dos jovens com a chegada dos anos 2000 eram o coração do grunge; o glam rock oitentista representava uma mentalidade meio agora-pode-tudo – especialmente no que se refere a sexo e drogas -, característica de períodos de abertura e pós-guerra; ao mesmo tempo, o punk surgia no outro lado da mesma moeda, em uma onda contra o conformismo; e por fim, nos anos 70, bandas como Led Zeppelin misturavam diferentes estilos musicais com mitologia e ocultismo, apostando também no storytelling e criando uma sonoridade única.
Atualmente quem agrega todas essas esferas é o rap. Desde sua concepção no final dos anos 70, passando pela chamada era de ouro nos 80 e a diversidade dos 90 – que nos trouxe 2pac, Dr. Dre, NWA, A Tribe Called Quest e Nas -, sempre foi parte crucial da cultura popular e deu voz especialmente à população negra e marginalizada (não só nos EUA como no mundo). E o gênero continua se expandindo cada vez mais.
Hoje, há os artistas que atendem ao hedonismo dos millennials como os que a gente vê nas reportagens da VICE – cuja relação com o sexo, festas e drogas tem ligação direta com o som de Future, Young Thug, Drake, Migos, Post Malone, entre outros. Ao mesmo tempo, de forma menos romantizada, rappers como Danny Brown e Isaiah Rashad pintam um retrato bruto das consequências desse estilo de vida. Enquanto Kendrick Lamar, A Tribe Called Quest e Joey Bada$$ (para citar alguns) encaixam-se no que intitulam de conscious rappers (rappers conscientes, em tradução livre) e se engajam mais em temas socialmente relevantes como racismo, violência policial e política.
A popularidade do gênero não é de agora. Desde sua concepção no final dos anos 70, passando pela chamada era de ouro nos 80 e a diversidade dos 90, sempre foi parte crucial da cultura popular.
Desses nomes, Kendrick é provavelmente o mais importante no cenário atual – tendo saído do underground até o topo das paradas. Ele tem uma capacidade invejável de narrar histórias vívidas seja sobre sua juventude em Compton (Good Kid m.A.A.d City), seja sobre o racismo, depressão e a necessidade de união dentro da comunidade negra (To Pimp A Butterfly) ou então a dificuldade de ter se tornado um exemplo e porta-voz dessas questões quando ele mesmo é humano e tem seus defeitos (DAMN.).
Ele entra na pele de vários personagens, cria linhas narrativas que amarram cada álbum e confere vários significados para uma mesma palavra, verso, ou música. (Como o single “Backseat Freestyle”, no qual, ao olhar a música isoladamente, ele parece pregar todos os clichês do gênero – o que destoa de seu trabalho -, mas, na verdade, no contexto do álbum, percebe-se que o “narrador” é o Kendrick ainda adolescente, bancando o “machão” para seus amigos).
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Ele consegue todos esses feitos ao mesmo tempo em que inova na questão musical, misturando tanto elementos de trap, jazz, funk e pop para criar as bases de suas músicas. O grupo californiano clipping. também capricha no storytelling (o último trabalho deles é um disco conceitual, que foi até indicado para o Prêmio Hugo de ficção científica), mas brilha mesmo na sonoridade. Bebendo na fonte do noise e da música experimental, inclusive produzindo seus próprios sintetizadores, eles fogem do lugar-comum.
O álbum Atrocity Exhibition, de Danny Brown, lançado no ano passado, é outro exemplo de inovação. As bases das músicas misturam post-punk, gêneros abstratos/experimentais, metais, trilhas sonoras de filmes antigos, noise e até elementos de world music – dando substrato a uma grande bad trip lírica e sonora. Os malucos do Death Grips não ficam atrás e misturam tudo o que já foi citado também com o hardcore.
Há ainda muitos outros exemplos, como o próprio Frank Ocean, que ganhou reconhecimento de crítica e público misturando R&B, pop, soul e hip hop de maneira criativa e cativante. Além de falar de temas como sexualidade e relacionamentos com uma sensibilidade sem igual.
O rap tem se provado um grande laboratório de experiências musicais que, de uma forma ou de outra, acabam ressoando no mainstream. Seu alcance e repercussão não são sem justificativa. Pela escolha e a forma com que trata seus temas, o rap consegue representar uma porção generosa da geração à qual eu pertenço – retratando fielmente tanto nossas dores quanto nossos prazeres.
P.S: Aqui eu falo mais especificamente do cenário norte-americano. No Brasil, o caminho é um pouco diferente e vale um texto à parte.
Conheça um pouco mais dos artistas citados aqui ouvindo a playlist abaixo!
https://open.spotify.com/user/1163547582/playlist/3HRO5XxdlEjzpvCEY1RenA