Quando se fala em MPB sempre se atrela o Brasil ao epíteto de “o país das cantoras”, um chavão que fala muito sobre uma complexa relação na qual as mulheres sempre eram a voz para compositores masculinos. Rita Lee e Joyce foram durante muito tempo algumas das raras compositoras femininas, com o tempo e outros nomes (Marina Lima, Marisa Monte, Adriana Calcanhotto) as compositoras se tornaram mais presentes, tanto que, na geração que surge a partir dos anos 2000, já vemos uma boa pluralidade de vozes a compor.
Por outra perspectiva, quando se fala em “país de cantoras”, quais os nomes que surgem na sua cabeça? Elis, Bethânia, Gal, Clara Nunes, entre outras, quase todas brancas. O único nome negro que realmente surge atrelado a estes é o de Elza Soares, [highlight color=”yellow”]figura fundamental para a música brasileira em diferentes décadas e que tem servido de forte inspiração para as novas gerações.[/highlight]
Depois de Elza, você tem que começar a puxar pela memória quem são as outras cantoras negras da nossa MPB: Elizeth Cardoso, Clementina de Jesus, Alcione, Carmem Silva, Leci Brandão, Dona Ivone Lara, Sandra de Sá (artista responsável por, vira e mexe, trazer à baila o termo Música Preta Brasileira, uma reapropriação da sigla MPB), Paula Lima, Cátia de França, Margareth Menezes, Daúde, Virgínia Rodrigues, entre algumas outras. Alguns nomes bem famosos e outros que muitos talvez não conheçam ou, no máximo, lembram vagamente.
Comumente, as cantoras negras sempre foram associadas ao samba, tanto que muitos poderiam ter dito ali acima “Leci Brandão e Dona Ivone Lara são sambistas, não cantoras de MPB”, como se sambista não fosse algo tão requintado a ponto de ser MPB. Em nossa história, inúmeras cantoras negras foram sempre relegadas a esse cenário mais popular, de nicho, algo sempre menor e não tão requintado para entrar no panteão da MPB.
Nesse link que se faz entre mulheres negras e samba, um fator me vem à mente: a primeira mulher a vender mais de 100 mil discos no Brasil foi Clara Nunes, uma mulher branca e cantora de samba. Clara é uma das grandes imagens do samba e da cultura negra brasileira e isso diz muito sobre o racismo sempre tão velado de nosso país. O talento e a genialidade de Clara são inegáveis, mas quantas artistas negras fizeram/fazem trabalhos relacionados/influenciados pelo mesmo universo dela e nunca tiveram um sucesso comercial maior? O trabalho atual de Marienne de Castro e Teresa Cristina, por exemplo, poderia ter um público ainda maior pelo país, de grande apelo comercial.
Enfim, essa discussão descamba para um cenário mais mercadológico, de inserção delas na mídia, do investimento de gravadoras nessas cantoras, todo um panorama histórico de relegar elas às tags mais de nicho. É óbvio que o sucesso comercial de Clara Nunes, para além de sua força magnânima enquanto artista, provém de uma divulgação muito forte, que conseguiu, à época, colocar canções de forte teor afro-religioso nas rádios, por exemplo.
Enfim, essa análise rasteira que faço aqui é apenas para que se inicie uma reflexão sobre esse passado das mulheres negras em nossa música popular, mas também para que vislumbremos o cenário atual de forma diferente. Hoje em dia, podemos considerar que temos um cenário mais democrático de produção musical, assim [highlight color=”yellow”]saímos ganhando ao ver as mulheres negras assumindo seus espaços como intérpretes, compositoras e instrumentistas.[/highlight] E elas estão no samba e em qualquer outro gênero que queiram.
Mahmundi, por exemplo, bebe no rock e nos anos 80 para gerar canções grudentas. Juçara Marçal, por sua vez, escolhe os caminhos mais estranhos e deixa a gente doido sempre, seja no Metá Metá ou em sua produção solo. A Luedji Luna lançou o ótimo disco, Um corpo no mundo, que traz diferentes ritmos afro em canções românticas e de apelo bastante pop. A Xênia França, do Aláfia, também lançou um discão solo que flerta com o R&B (já comentado por aqui). Diferentes universos que podem ser inseridos na tag da MPB, mas que também expandem essas possibilidades.
Para além da MPB, o funk, a partir dos anos 2000, criou um espaço amplo de voz para as mulheres negras de periferia: Tati Quebra Barraco, Deize Tigrona, MC Carol, Ludmilla, Linn da Quebrada. Cantoras diversas, que falam de forma popular, seja com canções radiofônicas ou com hits proibidões.
O rap é outro espaço de amplitude, desde que Negra Li surgia como backing vocal lá nos discos do RZO e do Sabotage até a atualidade, quando Karol Conká se tornou uma estrela pop nacional. Flora Mattos, Tássia Reis, MC Soffia, Rimas & Melodias, diferentes sonoridades e propostas que surgem do rap e vão pra outros caminhos, como por exemplo a excelente Iza, uma das apostas da nossa música, que mescla hip-hop, R&B e música pop de forma interessantíssima.
E seguimos: Anelis Assumpção, Thalma de Freitas, Liniker, MC Tha, Ellen Oléria, Dona Onete, Gaby Amarantos, Preta Gil, Lei Di Dai, Larissa Luz, Candy Mel,… Enfim, a lista felizmente tem aumentado e esperamos que siga assim, com artistas que flertam com a MPB e com diferentes gêneros, criando novos cenários.
Muitas dessas cantoras, ainda hoje, fazem a sua carreira à margem, na cara e na coragem, buscando seu lugar com muito, mas muito esforço, por isso mesmo é importante que se ouça o que elas têm a dizer. São vozes distintas, dissonantes, que não mostram uma cultura negra homogênea e pasteurizada: elas são múltiplas e distintas e trazem suas experiências e perspectivas para o centro. Essa é a riqueza da Música Preta Brasileira e precisamos estar atentos!