Aos 45 minutos do segundo tempo de 2015, “caiu” na internet o novo disco de David Bowie, o curto e direto Blackstar. Seguindo uma linha distinta de seu último lançamento, The Next Day (2013), Bowie fez o que dele se esperava: que ele não fizesse o que esperávamos. A contradição é proposital. Quando parecia que começávamos a decifrá-lo, o músico inglês dava um baile em todo mundo.
Blackstar é tudo, menos qualquer coisa que Bowie já tenha feito. A faixa que abre o disco, a homônima “Blackstar”, é uma opereta de art rock de 9 minutos e 55 segundos. Concebida como uma canção de 11 minutos, precisou ser editada para que pudesse ser vendida no iTunes – tempos modernos. De um lirismo ímpar e uma melancolia adjacente, a faixa ganhou um videoclipe com o selo David Bowie. Nele, uma mulher analisa o corpo de um astronauta caído, se decompondo sob a luz do sol eclipsada, enquanto espantalhos humanos preveem a tempestade.
Bowie parecia que cantava para si, ou para quem dele cobra algo. Cantou que “não é uma estrela do cinema”, “não é uma estrela pop”, mas, sim, “uma estrela negra”, enquanto a canção intercala um naipe de metais com uma batida eletrônica bem atual, mas sem mimetismo, pelo contrário, ele conseguiu ser original mesmo sem “inventar a roda”.
Bowie fez o que dele se esperava: que ele não fizesse o que esperávamos.
“’Tis a Pity She Was a Whore”, segunda faixa de Blackstar, é mais urgente, ríspida. A batida seca da bateria dita o ritmo, acompanhada de um sax acelerado, até a entrada da voz de Bowie. A canção esteve presente anteriormente como lado B do single “Sue (Or in a Season of Crime)” em 2014, que também está neste novo trabalho, e que também foi remodelada para 2016. Seu naipe de metais cria uma cadência bem característica do jazz e acrescenta pitadas do acid jazz. Por sinal, o jazz, o acid jazz e o funk dão unidade ao disco, como mostra a faixa “Lazarus”.
“Girl Loves Me”, quinta faixa, ganha teclados e uma roupagem espacial, super oitentista e com doses de gangsta rap. É a música mais surpreendente do disco, por sua obscuridade, pela agressividade de Bowie. E também por mesclar frases da obra de Anthony Burgess, Laranja Mecânica, com gírias Polari, utilizadas por gays britânicos, prostitutas, marinheiros, entre outros. É totalmente intrigante, como o conjunto de sete canções vazadas na tarde do dia 31 de dezembro. A influência de trabalhos como de Kendrick Lamar é evidente, deixando claro como Bowie foi uma esponja capaz de absorver tudo o que fosse necessário para criar uma obra moderna.
“Dollar Days” e “I Can’t Give Everything Away” formam um dueto particular. A primeira, também pincelada de jazz, leva o ouvinte a outro lugar, no qual somos arrebatados por uma balada na qual Bowie questiona se está “morrendo de vontade” ou “morrendo também”. Sua beleza é causada pela imersão em sua história, na vivencia da obra do Camaleão. Já a segunda é a mais alegre do disco, com um toque do que vimos em Low (1977).
https://www.youtube.com/watch?v=Zk1etr2EF_Y
Uma ponte facilmente identificável entre sua obra e Blackstar é a experimentação. Para nossa sorte, David Bowie conseguiu fazer isso de forma tão cuidadosa que, ainda que não faça um álbum conceitual, como os da “Trilogia de Berlim” (Low, Heroes e Lodger), ele cava um espaço em seu catálogo musical com um disco denso, que nos coloca diante da missão de adaptar nossos dicionários e reinterpretá-lo, não como um “novo” Bowie, mas como o artista multifacetado que invariavelmente nos deixava boquiabertos por percebermos que somos limitados, logo, incapacitados para compreendê-lo em toda sua essência e magnitude.