Brasil, 1956. Ano em que Juscelino Kubitschek tomou posse como presidente do país, Pelé começava sua carreira no Santos, e que o pai do bepop, Dizzy Gillespie, se apresentou com sua banda no Rio de Janeiro, em meio a uma grande turnê pela América do Sul. Gillespie, o homem responsável por produzir algumas das melhores performances de trompete da história do jazz, era acompanhado por músicos de altíssimo escalão, e trazia consigo a pioneira Melba Liston, a primeira mulher trombonista a integrar big bands entre as décadas de 1950 e 1960.
Liston era invariavelmente não apenas a primeira, mas uma das únicas mulheres de seu tempo a integrar bandas itinerantes em um ambiente dominado por homens. Logo quando entrou na banda de Gillespie, dividia espaço com ninguém menos que John Coltrane no sax e o pianista John Lewis.
Havia as cantoras, sim. Billie Holiday, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, apenas para citar algumas das grandes divas do jazz. Mas mulheres instrumentistas… apenas instrumentistas? Este já era um terreno muito mais árido para uma artista em um man’s man’s world.
Claro, tivemos Nina Simone, cantora, compositora e pianista (clássica e popular). Nina é um caso que valeria páginas e páginas de um livro apenas sobre sua história, mas se eu pudesse dar apenas uma dica, sugeriria o documentário What Happened, Miss Simone?”, de 2015, que está disponível na Netflix.
Mas voltando ao Rio de Janeiro dos anos 50. Reza a lenda de que foi naquele show no Rio de Janeiro, vendo de pertinho Dizzi Gillespie, Melba Liston e a banda levarem o público ao delírio jazzístico, que nossa Gilda de Barros, cantora integrante do seleto time da Rádio Nacional do Brasil, se apaixonara pela atuação de Melba Liston no trombone. E resolvera aprender a tocar o instrumento.
Gilda, apesar de estar totalmente imersa no mundo artístico-musical, eleita a “princesa do rádio” em 1953 e casada com Raul de Barros, rei da gafieira e dono do “trombone de ouro”, como era conhecido na época, queria mais. Além de cantar, queria tocar trombone assim como Melba Liston.
Gilda de Barros, até então apenas uma intérprete – uma grande intérprete – ousou ser também instrumentista.
Raul de Barros, seu marido, passou a ensiná-la.
Um ano depois, explode a polêmica acerca do novo ofício da princesa do rádio: trombonista? Gilda de Barros, até então apenas uma intérprete – uma grande intérprete – ousou ser também instrumentista.
Brasil, 1957: lindo e conservador. O caso virou notícia na Revista do Rádio, publicação que retratou todo o apogeu e queda da Era do Rádio brasileira. A manchete questionava abertamente: “mulher deve tocar trombone?”.
Se podia ou não podia, se devia ou não, Gilda fora aprovada pessoalmente por Moura, Nelsinho e Capilé, os três trombonistas da orquestra de Rádio. O que diziam é que isso era mais que um vestibular.
Essa história curiosa e um tanto tragicômica decorrida num longínquo Brasil do século passado e relembrada através dos arquivos do Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS-RJ) não pode ser esquecida, pois fora um dos muitos trilhos abertos por mulheres e para mulheres dentro da música brasileira, quebrando alguns dos nossos muitos antigos paradigmas. Se é difícil e complexo enfrentar convenções sociais hoje, imagine o que era fazer isso na metade do século passado?
Na última semana de junho, Gilda de Barros completaria 90 anos de idade e fica aqui nossa singela homenagem a uma mulher que tudo fez por sua paixão: a música.