Fazia tempo que um clipe não causava tanto estardalhaço como “This Is America”, novo single de Childish Gambino, lançado na última semana. Nos dias que se seguiram, jornais, sites de música e canais no YouTube foram inundados com tentativas de dissecar as referências e interpretar os muitos sentidos possíveis da nova empreitada de Donald Glover.
Em todos os casos, no entanto, parece que um ponto essencial foi deixado de lado: a música. Não desmerecendo o clipe, claro, mas ambos são complementares e contribuem para transmitir a mensagem de Gambino. Na verdade, a música até adiciona algumas camadas a mais para a obra como um todo.
Assim como no clipe, a estética da canção se baseia muito nos contrastes entre cada seção. Na introdução ouvimos algo remanescente do soul e funk que deu base para o último disco de Gambino, Awaken! My Love, somado a elementos eletrônicos e de música africana.
A atmosfera solar e sem preocupações desse primeiro momento é totalmente engolida pelos versos que seguem. Na maior parte do tempo, a produção não economiza nos graves agressivos, assumindo a sonoridade do trap com todos os seus elementos mais grudentos. Entre eles, os ad-libs, esses pequenos “bordões sonoros” que viraram marca registrada de figuras como Lil Pump e Migos.
Gambino trabalha com a ideia de que nós todos desviamos nossa atenção de problemas graves (como o racismo e a violência) com futilidades.
Aliás, “This Is America” é uma verdadeira saturação de ad-libs, todos gravados por convidados como Young Thug, 21 Savage e Quavo (Migos) — algumas figuras centrais no mainstream do rap contemporâneo. Além disso, Gambino abusa de letras repetitivas, cadências de palavras e flows utilizados à exaustão no trap (como o famoso triplet flow). Basta notar a semelhança do verso “Contraband, contraband, contraband” e o “Gucci gang, Gucci gang, Gucci gang” de Lil Pump, por exemplo.
Quando juntamos esses elementos todos com a letra da música, é possível chegar a algumas interpretações. Gambino trabalha com a ideia de que nós todos desviamos nossa atenção de problemas graves (como o racismo e a violência) com futilidades (redes sociais, consumismo, etc). Parece que ele enquadra o estilo de vida hedonista e sem consequência promovido pelo trap como parte do problema. E faz isso justamente incorporando essa sonoridade, essa estética, em sua música.
O gênero musical que nasceu do underground como uma forma de escancarar abismos sociais e raciais (seja nos EUA, seja aqui no Brasil), acabou tomando outro rumo. A ostentação, a princípio uma forma de representar as conquistas de uma ascensão social quase impossível, se banalizou. Hoje, boa parte dos maiores hits do gênero estão seguindo uma linha cada vez mais superficial, simplista e descartável — mirando sobretudo as festas e as rádios. Já disse Diomedes Chinaski, “O rap devia ser pra emancipar nóis / Não festinha pra encher de droga cu de playboy”.
A figura do rapper virou um produto altamente rentável a partir do momento que o rap ganhou o mainstream e foi incorporado pelo mercado. Ele está ali para ser explorado enquanto rende dinheiro, pouco importa a mensagem ou a pessoa por trás dela. A última estrofe da música deixa isso mais claro: “You just a black man in this world / You just a barcode, ayy / You just a black man in this world / Drivin’ expensive foreigns, ayy / You just a big dawg, yeah / I kenneled him in the backyard / No probably ain’t life to a dog / For a big dog”.
Não importa o aparente “empoderamento” dos “trappers” e outros artistas do ramo. Não importa o estilo de vida e a riqueza material. Enquanto negros, eles ainda estão sujeitos a todas as discriminações, desigualdades e violências promovidas pelo sistema que os explora em seu próprio “jogo”.
Mas é claro, essa é apenas mais uma interpretação possível sobre a música. E provavelmente continuará sendo só isso, já que Donald Glover não pretende esclarecer nada a respeito de seu novo single. Nos resta esperar pelo seu futuro álbum para ver se esses temas serão recorrentes nas outras faixas, ou se farão parte de algum conceito maior.