Na noite do sábado, dia 1o de julho, enquanto a cidade do Rio de Janeiro se encontrava parcialmente submersa por causa das fortes pancadas de chuva, eu me dirigia ao centro para (mais) uma noite no Motim.
Bem, primeiro, eu preciso dizer que já havia conhecido a casa ano passado, quando fui levada por uma amiga de Brasília para uma noite daquelas em que a gente não se lembra muito bem a sequência dos acontecimentos. Vi um show ótimo, torci o pé e voltei para casa sob circunstâncias misteriosas.
Nesse meio tempo, a fama do Motim cresceu e o local se consolidou como um dos principais espaços para shows, encontros das naturezas mais diversas, atividades artísticas, aulas, oficinais e tudo mais que Letícia e Amanda, os dois nomes à frente do local, possam abrigar entre as quatro paredes da sala 302. Aliás, a primeira impressão que se tem do espaço não poderia ser mais positiva.
Na sala de tamanho mediano, ocupada em parte por um palco ao fundo, as paredes chamam a atenção, cobertas de pôsteres, cartazes e trabalhos de diversas artistas. Mesmo antes de saber que o Motim é um espaço gerido por mulheres e que prioriza mulheres, é possível perceber que não se trata de um lugar qualquer.
Em tempos de redes sociais, uma narrativa se popularizou, às vezes em inglês ou traduzida para o português, sobre um bar que ofereceria assistência a mulheres que estão sofrendo assédio ou violência através de um código ou algo dessa natureza. No banheiro do Motim, existe de fato um papel que avisa às frequentadoras que, em caso de assédio ou qualquer problema, pedir ajuda no bar. Aqui, mulheres que ajudam mulheres não são apenas uma história que se compartilha por mera anuência ou desejo de parecer socialmente correto, e sim uma realidade.
Mais do que um lembrete do estado de exceção em que vivemos, a fala de Tatiana foi um relato emocionado do impacto da violência e do racismo no minúsculo fragmento de realidade emocional que é uma única mulher.
Na noite de sábado, o show programado era da cantautora Tatiana Nascimento, que com seu projeto meiobeatmeiobanzo, que mistura batidas eletrônicas com narrativas da diáspora negra e da dissidência sexual. Só que como no Rio de Janeiro basta uma chuva para que a cidade mergulhe no caos, Tatiana ficou presa no engarrafamento enquanto Zé Balbino e Cristiano Figueiró, seus companheiros de projeto, já se encontravam na casa. Assim, enquanto Tatiana não chegava, os dois músicos puderam apresentar seu projeto paralelo, chamado Trilha Sonora.
O show principal da noite se iniciou assim que a cantora chegou. Combinando poesia falada e canções, Tatiana oferece uma viagem de força e resistência. Em um dos momentos mais tocantes da noite, a cantora compartilhou com o público sua experiência em um ônibus carioca, a caminho do show. Mais do que um lembrete do estado de exceção em que vivemos, a fala de Tatiana foi um relato emocionado do impacto da violência e do racismo no minúsculo fragmento de realidade emocional que é uma única mulher.
Ao final do show, tive a oportunidade de conversar por alguns minutos com Letícia Lopes, uma das idealizadoras e proprietárias do espaço. Muito simpática, Letícia compartilhou comigo como nasceu o Motim. Ao ser demitida de seu emprego formal, logo após o nascimento de sua filha, ela sentiu a necessidade de investir em um estúdio para a Efusiva Records, projeto que já existia como selo independente. Convidada pela amiga Amanda, Letícia desistiu de abrir um espaço na Baixada Fluminense, periferia do Rio de Janeiro onde mora, e aceitou a parceria no centro da cidade, próximo à estação de metrô da Uruguaiana.
Letícia salientou que o Motim é um espaço misto, no qual homens e mulheres podem se apresentar, oferecer aulas, palestras ou oficinas, mas enfatizou também a prioridade dada às mulheres e a preocupação em estar à frente de um local seguro, e em checar o perfil de cada um dos homens que passa por lá, procurando por denúncias de assédios e outras questões que podem vir a gerar qualquer tipo de desconforto. “A gente sabe que não vai conseguir fazer um lugar 100% seguro, até porque a gente não tem 100% de controle sobre quem entra ou sai, mas o máximo que a gente pode fazer, se vai vir tocar uma banda aqui, a gente pesquisa, conversa com outras meninas”, afirmou a proprietária, sempre salientando que a prioridade é das mulheres.
O espaço também é usado por inúmeras artistas para expor suas obras, coletivos feministas fazem reuniões lá e muitas mulheres dão aulas de instrumentos diversos na sala 302. Mais do que um lugar que acolhe mulheres, o Motim é um espaço onde a sensação de conforto e o clima de amizade imperam, todos conversam, os frequentadores se conhecem, e a noite flui num clima absoluto de tranquilidade, que, confesso, parece cada vez mais raro em meio ao caos urbano que domina o Rio de Janeiro.
Perto de completar 1 ano em agosto, o Motim soa como um sopro de ar fresco em uma cidade dominada por casas noturnas caras e superestimadas e, principalmente, como um oásis feminino e autoral no meio de tantos lugares que ainda preferem priorizar bandas cover. Diverso, múltiplo e sem medo de riscos, o trabalho de Letícia e Amanda à frente da casa é promissor e só faz com que cada um de nós que passa por lá queira voltar e fique na expectativa de quais serão os próximos passos ou eventos.
Enquanto moradora dessa cidade há tanto tempo, só posso deixar meu desejo sincero de que iniciativas como essa não apenas se mantenham, como também se proliferem. Afinal, que futuro melhor podemos desejar para uma cidade que não seja essencialmente inclusivo, despido de preconceitos e feminino?
SERVIÇO | Motim
Onde: Rua Julia Lopes de Almeida, 10/302
Programação disponível na página da casa no Facebook.