Em meados da década de 1970 a juventude inglesa andava meio sem rumo. Pouco dinheiro no bolso, poucas perspectivas. Quem leu a matéria publicada aqui deve lembrar sobre o que falo. Mas, definitivamente, no dia 4 de junho de 1976 as coisas mudaram. Inicialmente para os meninos de Manchester. Depois para os de Liverpool.
Na noite daquela data, no Lesser Free Trade Hall, os Sex Pistols fariam o primeiro show em Manchester. Por conta da verborragia de Johnny Roten, quase toda a turnê da banda pelo interior havia sido cancelada. Mas em Manchester o palco e a plateia escassa pegaram fogo.
A energia dos Pistols tomou conta do coração de uma geração que procurava por algo. Em particular dos que liam a NME e sonhavam em formar uma banda. Os Buzzcocks, banda que apadrinhou os Pistols em Manchester, foram os primeiros a lançar um som punk, depois do explosivo Anarchy in UK. Produzido por Martin Hannett, o EP Spiral Scratch, foi lançado em 29 de janeiro de 1977.
O pavio que havia sido aceso virou chama. A inspiração era o punk, em toda a sua essência. Serviu para todas as bandas que beberam da fonte, mesmo que mais tarde fossem “catalogadas” em outras categorias da música.
Liverpool teve um delay de uns seis meses até receber os Pistols. Quem chegou antes foi o The Clash que tocou na cidade dia 5 de maio de 1977. Também havia poucas bandas locais genuinamente punks – o The Spitfire Boys (primeira banda de Budgie, do Siouxsie and the Banshees), Deaf School e Dr. Feelgood.
As três tinham um som vigoroso e performances nervosas no palco. Tudo o que a juventude da cidade queria – algo longe de ser parecido com os Beatles. Tudo o que era necessário para novas bandas chegarem – Echo and the Bunnymen, Teardrop Explodes, The Wild Swans, OMD, Frank Goes to Hollywood e Wah! Heat.
Já em Manchester, bandas punks pipocavam de todo lado – The Negatives, Eater, Slaughter & the Dogs, The Worst, The Drones, Warsaw (depois Joy Division), The Fall, Buzzcocks, Magazine etc. Natural, então, que houvesse espaço nas duas cidades para as novas bandas tocarem. Vários locais foram abertos em Manchester (a maioria espeluncas de quinta).
O pavio que havia sido aceso virou chama. A inspiração era o punk, em toda a sua essência. Serviu para todas as bandas que beberam da fonte, mesmo que mais tarde fossem ‘catalogadas’ em outras categorias da música.
O famoso Electric Circus, a Pips Discotheque (onde o Joy Division tocou pela primeira vez com esse nome), o The Ranch, o Salfords Lads Club (que está na capa de um dos discos dos Smiths, lembra?), o The Squat- “um pardieiro, que não tinha luz e o frio era de matar”, nas palavras de Peter Hook, escritas na imperdível (e impagável) biografia Joy Division: Unknown Pleasures (publicado no Brasil pela Seoman), e os dois lugares mais legendários de Manchester, criado por Tony Wilson – a Factory, que funcionava no antigo Russell Club; e mais tarde o Haçienda, um local que literalmente foi tomado pelo som e a fúria.
Liverpool foi mais modesta. Em 1976, três colegas – Roger Eagle, Ken Testi e Pete Fulwell resolveram alugar uma casa, exatamente a poucos metros de onde era o Cavern Club, para promover shows. Desse desejo nasceu o Eric’s Club. Em 1978, Roger Eagle e Tony Wilson fizeram uma parceria bacana. Uma espécie de intercâmbio, em que as bandas de Liverpool tocariam em Manchester e vice-versa. Às sextas-feiras, na Factory. Aos sábados, no Eric’s.
Depois de alguns shows, uma banda precisa que alguém lance o material, certo? A ideia inicial era a de criar a gravadora Eric’s/Factory. O primeiro EP a ser lançado seria com OMD de um lado e do outro, Joy Division. Não deu certo. Não sei se Tony sacaneou, mas em seguida ele criou a Factory Records.
Assim, quem assumiu a empreitada de criar uma gravadora em Liverpool foram Bill Drummond (Big in Japan, The KLF) e David Balfe (The Teardrop Explodes, Big in Japan e Dalek I Love You). A Zoo Records surgiu em 1978. O primeiro material lançado pela gravadora foi o EP do Big in Japan, “From Y to Z and Never Again”. Em seguida saíram os primeiros singles do Echo and the Bunnymen – “The Pictures on My Wall”, em 1979 e do Teardrop Explodes “Sliping Gas”, também em 1979.
Depois de terem lugar para tocar e produzir música, precisava, também, de um local para se comprar música. Em Manchester havia algumas lojas bem interessantes. A Robinson’s Records, com vasto material dos anos 1970, fonte de inspiração para muitos que começavam a tornar-se músicos. A Rare Records, onde Ian Curtis trabalhou por um tempo. A Discount Records, uma das lojas preferidas de Johnny Marr e a Kingbee Records. Somente na Kingbee você iria encontrar material do Sex Pistols. Mais no final da década de 1970, precisamente em 1978, a Piccadilly Records tornou-se referência em boa música. Até hoje é assim.
Liverpool tinha a Probe Records, fundada, em 1971, por Geoff Davies e sua mulher Annie. Geoff quis fazer uma loja em que as pessoas pudessem ouvir os discos sem ser questionadas se iriam comprar. E também um local em que os fãs pudessem encontrar toda a discografia da banda que gostavam e não somente algumas opções. A loja de Geoff era diferente de todas as outras. Não vendia só discos. Quem quisesse também podia encontrar livros sobre LSD e Rizlas (no bom português, é o papel-seda usado para enrolar baseado). Aos clientes era servido chá.
A Probe era tão reverenciada que os jovens da Irlanda pegavam um barco que saia de Dublin à noite e chegava a Liverpool logo pela manhã. Neste dia, Geoff abria a loja mais cedo para atender os clientes irlandeses. Nos sábados à tarde o programa dos punks era ir para a Probe. Ficavam nas escadas, às vezes sem grana pra comprar discos. Mas era como um night club, só que às duas da tarde!
Há vários materiais sobre Manchester e Liverpool para garimpar na internet. Recomendo três: a coletânea “North by North West”, compilação com bandas de Manchester e Liverpool, organizada por Paul Morley, jornalista da NME; e os documentários “In the Club-Eric´s” e “Joy Division to Happy Mondays Factory Records“.
A propósito: o Manchester Unite tem 64 títulos e o Liverpool FC, 59. Contando tudo – Liga dos Campeões, Liga Inglesa, Copa da Inglaterra, Campeonato Inglês etc. De todo modo, “You’ll Never Walk Alone”, babe.
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