Chove e faz frio na cidade. Lá fora, o dia cinza guarda uma melancolia que combina com bebida forte e lágrima nos olhos. A garoa fina parece uma cortina que me afasta lentamente do mundo que existe horizonte afora. Por aqui, ao menos agora, a tempestade psíquica já passou. É tempo de se aquietar, de olhar pra dentro de si, não em busca de respostas, mas, sim, de paz e aconchego. É hora de encarar a face daqueles eternos fantasmas que carregamos e que, apesar de terríveis, não passam velhos amigos cheirando à naftalina e desespero.
Pouso o cigarro no cinzeiro e observo o bailado da fumaça. O trepidar das cinzas investindo contra louça, a brasa a “faiscar” refletida na janela embaçada que guarda o orvalho da noite que se principia. Puxo o cigarro e em um único trago sinto o gosto de toda a raiva que guardo no fundo da alma, acalmando o paladar com um gole seco daquele conhaque que paira delicadamente sobre a mancha de copos tatuada na velha escrivaninha de trabalho. Criar é preciso e, para tanto, é preciso viver. Viver intensamente tudo sobre a vida e sobre a morte. Viver alucinadamente em busca de uma violenta dose de inspiração, ou de um veneno capaz de abater o pássaro do tédio que sobrevoa meus pensamentos.
A noite desce feito véu, os cigarros acumulam-se no cinzeiro, a velha garrafa de conhaque tenta, em vão, dedicar-me mais algumas gotas de seu fundo já seco feito o chão batido do sertão. Na janela, por entre as lágrimas do dia, surge um sol de estourar as retinas cansadas diante da tela quase em branco. Fecho o computador. Alcanço um copo de água do chão e me arrumo para, enfim, dormir o sono que se apossa de meu corpo. A essa rotina, que muitos insistem em ridicularizar, dou o nome de trabalho.
A inglória batalha do ócio não é algo de agora. Sobram obras mundo afora que tentam catalogar, compreender e até mesmo condenar essa prática. Muito do que se diz a respeito tem a ver com uma rasa, e diversas vezes mal intencionada, compreensão do significado da palavra. Literalmente, o ócio é definido enquanto repouso. A cessação de um trabalho ou de uma atividade, remunerada ou não. Que todo ser humano merece um descanso da rotina trabalhista atordoante a que somos submetidos é obvio, não podemos comprar o discurso workaholic, que só interessa ao patrão, para justificar as insanidades de um mercado refém de cifras. É evidente, também, que todo ser pretende estar produtivo diante do mundo, no entanto, é preciso dar plenos direitos a qualquer cidadão sobre sua produção e os meios necessários para o seu desenvolvimento. Para tanto, é preciso respeitar as produções, como as produções artísticas, que fazem do ócio a sua principal matéria-prima.
Em célebre passagem, o poeta nos brinda, através de sua simplicidade, com a seguinte pérola: ‘e eu lá quero saber de trabalhar, pra morrer pobre o que eu tenho já dá. O mulher trás meu lençol, que eu estou no banco deitado!’
O ócio, portanto, não deve servir de régua para medir o quão laborioso é um trabalhador. Aqueles que assim o fazem e enxergam no descanso um inimigo da produtividade são, pois, operários padrões manipulados por um discurso moralista que pretende dominar e controlar através do medo da demissão e do fantasma do desemprego. Revoltar-se contra essa condição é uma maneira de libertar-se para as delícias do mundo que pulsa por trás das janelas dos empoeirados gabinetes do espírito.
Em relação à arte, a coisa fica ainda mais complicada. É sabido que vivemos em um mundo que não dá o devido valor às obras artísticas. Cultuamos gênios, consumimos nomes e pessoas, mastigamos obras. Temos o olhar domesticado pelas prateleiras intermináveis de um estoque infinito. Vendem-se Picassos como vendem-se carros, no entanto, esquecemo-nos que a criação artística, como toda criação, não se dá através de linhas de produção. A reprodução é uma técnica, a criação é um processo trabalhoso que demanda, acima de tudo, tempo. E tempo nesse sentido é ócio puro. O que seria da poesia sem Rimbaud, por exemplo? E o que seria desse Rimbaud poeta sem suas caminhadas à deriva?
Vivemos presos a fábulas como a de Esopo, recontada por La Fontaine, onde a moralidade nos ensina que a cigarra morre de fome por conta de seu canto. Ao diabo com sua filosofia de formigueiros, nós pretendemos passar pela vida cantando nossas desgraças em alto e bom tom para aqueles que queiram se contagiar pela canção de nossa miséria.
O tema me leva, como quase tudo, ao teatro. Dentre tantas obras que poderiam figurar por aqui, me vem à cabeça uma que talvez seja a que de maneira mais simples e lúdica exemplifica a questão: A Farsa da Boa Preguiça, de Ariano Suassuna. A peça conta a história de Joaquim Simão, poeta cantador das belezas de sua terra que vive entre a “preguiça”, ócio criativo, e as obrigações financeiras do dia-a-dia. Pressionado pela mulher para arrumar serviço, Simão insiste no ofício da poesia mesmo diante de sua eminente miséria. A crença no cantar, nos versos de sua gente, elevam o espírito do poeta que se nega a procurar emprego formal, já que é um “trabalhador das ideias”. O coronel Aderaldo Catacão, encantado pelos dotes femininos de Nevinha, mulher do poeta, tenta a todo custo conquistá-la ofertando presentes e tentando convencê-la de que está amarrada a um vagabundo incorrigível. A chegada de Clarabela, mulher do Coronel, evidencia o charlatanismo dos famosos merchans de arte, que escondem sua estupidez atrás de acessórios, no caso uma piteira, que nos dias atuais, poderia ser facilmente substituída por óculos de aros pretos e gestos planejados.
Entre deuses e demônios, em um profundo mergulho na alma brasileira, Ariano faz uma defesa não só do sertanejo, mas de sua cultura que precisa, e deve, ser cantada por todos os cantos de nossa terra. Em célebre passagem, o poeta nos brinda, através de sua simplicidade, com a seguinte pérola: “e eu lá quero saber de trabalhar, pra morrer pobre o que eu tenho já dá. O mulher trás meu lençol, que eu estou no banco deitado!”
Assim como Suassuna e seu personagem, eu também sou adepto do ócio, seja ele criativo ou não. Atormenta-me a absurda ideia de sucesso de nosso tempo, um sucesso fictício e estúpido que visa um consumo desenfreado e patológico que tem nos levado ao abismo da existência. Enxergo no ócio não o descanso, tão pouco a preguiça, mas, sim, um tempo dedicado ao nada. Sim, o nada que por ser nada guarda em si todas as possibilidades do mundo. O nada que, como disse Nietzsche, é detentor do inaudito. Crente em um mundo onde possamos simplesmente morrer em paz enquanto tornamos a existência um tiquinho mais tolerante através de nossas paixões transformadas em obras, eu, como Simão, peço o meu lençol à pessoa amada e vos digo, sem pestanejar, que dedicarei meus dias a trabalhar o nada!