O teatro é, acima de tudo, um ato de desvairismo, uma crença no absurdo que acomete feito doença almas que não se saciam com uma existência insossa e sem graça. Viver essa arte nunca foi fácil, e temos a impressão de que por aqui, em terras tupiniquins, nunca será. Aqueles que desejam realizar um espetáculo sabem de antemão que as dificuldades não são poucas, pelo contrário: acreditar na criação artística em nosso país é uma espécie de sacerdócio.
Da ideia à realização, entre a produção e a apresentação, tudo pode acontecer ou, no pior dos casos, não acontecer. Não são poucas as vezes em que artistas abortam obras, adaptam sonhos ou dinamitam desejos. Aliás, se analisarmos bem a coisa, chegaremos à triste conclusão de que pouquíssimos artistas conseguem realmente realizar aquilo que desejam. A impossibilidade talvez seja a grande companheira desses seres do palco, infelizmente.
Mas para toda regra existe ao menos uma exceção. Sabemos que qualquer espetáculo teatral enfrentará as tais dificuldades, elas não dão sossego. Mas também sabemos que é preciso sonhar. E se for para enfrentar o abismo, que seja ao menos um abismo de rosas como aquele que surgia das cordas de Dilermando Reis. Recorremos a diversos mecanismos para levar o desejo adiante. Muitas vezes nos submetendo a situações e imposições que julgamos lamentáveis, mas sabemos que entre cada sonho existe um dia a ser vencido. Por isso seguimos. Mas nas artes, como na vida, não existe certeza alguma. Por isso, existem aqueles artistas que conseguiram, com esforço, talento e uma ajuda do acaso, a possibilidade de fazer o que bem entender. São poucos, é bem verdade. A maioria de nós continua descobrindo um lado para cobrir o outro, mas para esses afortunados a coberta dá, e sobra.
Um desses artistas é Antônio Fagundes. De talento raro e escolhas acertadas, a carreira de Fagundes é um sucesso inconteste. Não importa se no teatro, no cinema ou na televisão: o prestígio de Antônio Fagundes é o mesmo independente da aventura a que se submeta. Não são poucos os personagens construídos por ele que fazem parte de nosso cotidiano até hoje. Foi Chicó, Oswald de Andrade e operário. Plantou cacau, criou gado, morreu assassinado em mistério. Tornou-se até o dono do mundo. No teatro, fez tudo: Nelson Rodrigues, Boal, Guarnieri e Castro Alves. Participou de peças que são até hoje marcos de nossos palcos: Muro de arrimo, O homem elefante, Feira Paulista de opinião e tantas outras.
É desnecessário ficar por aqui a enumerar os feitos do homem; goste-se ou não do cabra, acredite-se ou não em heróis e mitos, é inegável que Fagundes faz parte de um grupo seleto de “monstros sagrados” da atuação. Mas paro um instante de escrever sobre Antônio Fagundes para lembrar de um outro ator, o jovem Rafael, que conheci tempos atrás por acaso e nunca mais vi desde então. Não me lembrava do Rafael, tão pouco do breve papo que tivemos nos corredores burocráticos da cultura, mas sua imagem voltou feito um fantasma em minha memória no início da semana. A causa do assombro? Antônio Fagundes!
É desnecessário ficar por aqui a enumerar os feitos do homem; goste-se ou não do cabra, acredite-se ou não em heróis e mitos, é inegável que Fagundes faz parte de um grupo seleto de ‘monstros sagrados’ da atuação.
Rafael, diferentemente de Fagundão, vive entre sonhos e tropeços. É cabelereiro desde sempre, e há algum tempo decidiu que o que gostaria mesmo era de ser ator. Acredita que herdou do pai desconhecido o gosto pelo teatro, afinal a herança genética da mãe foram os cabelos cacheados, que ele odeia, e a facilidade com as tesouras.
Rafa divide seu tempo entre condicionadores e textos grifados de amarelo, entre a navalha e a coxia. Ao largar o expediente do salão mal tem tempo pra comer. Coloca uma roupa leve, enfia algumas frutas na bolsa e toca pro metrô em direção ao seu sonho. A distância é grande: são 10 estações dividas em duas baldeações até a escola onde estuda teatro. Ali, Rafa labuta suas cenas e aprende sobre a arte que o encanta. Fica por lá das 19h às 22h, quando volta surrado e realizado no caminho inverso do vagão metálico, devorando algumas maçãs enquanto organiza na cabeça a lista de clientes do próximo dia no salão. Rafael, como tantos outros atores, ainda vive um sonho. Pode ser que um dia consiga chegar a ser um novo Antônio Fagundes? Claro que sim! Mas sabemos que para isso não bastam o talento e a vontade, por isso Rafael vive com tesouras entaladas na garganta para lembrá-lo que, talvez, ele também nunca as possa deixar de lado.
Quando conheci Rafael, ele não parecia o garoto cabisbaixo coberto de fios de cabelo no fundo do salão que divide com a mãe. O rapaz estava radiante, apesar da longa espera a que estava submetido. O motivo dessa felicidade? Um professor de Rafael o convidou, junto a outros três colegas, para participar de sua primeira montagem. O grupo do mestre havia sido contemplado por um desses tantos editais de cultura que existem por aí, e os garotos por conta disso receberiam seu primeiro salário, ou cachê, como gostam de dizer os atores. Se a coisa aconteceu ou não são outros quinhentos. Como disse, nunca mais soube do tal Rafael, o mais falante da turma, e tão pouco sei se o projeto realmente aconteceu. A única certeza que tenho é a de que, apesar de não ser nenhum Antônio Fagundes, aquele dia o Rafael não via diferença alguma entre eles, eram colegas de profissão e espero que ainda o sejam.
Voltando ao ator consagrado, e justificando a pausa para falar de Rafael, Fagundes deu uma entrevista essa semana para a jornalista Mônica Bergamo. Dentre outras coisas, muitas delas acertadas, o ator diz que o teatro está morrendo. A causa? As tais leis de incentivo, que sempre causam polêmica. Fagundes acredita que as tais leis são uma espécie de muleta, palavras minhas e não dele, que acabam mais por atrapalhar do que ajudar à própria arte. Segundo o ator: “As pessoas [do cenário artístico] não perceberam, é uma pena. Venho falando isso há muito tempo, mas eles não perceberam que estão morrendo. O teatro está morrendo.” E continua sobre os adeptos das tais leis: “Só aprendem a captar [recursos]. Não aprendeu com o público dele, não aprendeu com o exercício dele, não aprendeu com as coisas que fez. Não aprendeu que ele tá diminuindo cada vez mais, ao contrário de estar se comunicando”. Além disso, o ator diz que muitas das salas atuais têm espaços limitados, com capacidade para menos de 100 pessoas e que teatro custa caro, “não dá pra cobrar R$ 5,00”.
Daí pra frente, Antônio Fagundes usa sua peça atual, Baixa Terapia, para exemplo de como se deve fazer teatro. Com ingressos a módicos R$ 100,00, um público de 90 mil pessoas e a possibilidade de viajar por diversos países, o ator tenta provar por A + B que o teatro que ele produz é o teatro vivente, talvez o único. Através do sucesso de sua peça, o ator tenta nos convencer de que é possível seguirmos o seu exemplo, ele só se esquece de uma coisa: nem todos somos Antônio Fagundes.
Eu, como o Rei do Gado, também tenho diversas críticas às leis de incentivo. Eu, como ele, também não submeto minhas obras à aprovação de uma banca desconhecida, com critérios obscuros e rabo preso com diversas organizações e associações. Sempre acreditei no “faça você mesmo” e pago o preço de algumas escolhas. Diferente de Antônio Fagundes, obrigo-me diariamente a enterrar sonhos por conta da impossibilidade, mas como ele toco o bonde. Aos olhos do mundo, e do dono dele, posso parecer um fracasso: o pai de um teatro que já nasce morto, escondido em salinhas pequenas e fadadas ao fechamento rápido, com limitações geográficas e sem o séquito gigantesco (NOVENTA MIL!!!!) de expectadores. Mas o que o não sabe, ou ao menos parece não saber, é que entre o meu fracasso e o seu sucesso existe algo maior: o próprio teatro.
As pequenas salas que Fagundão despreza guardam grandes ideias, como em qualquer outro palco. Com o sucesso, nesse caso frutos de esforço, dedicação e entrega por parte do artista, há uma mudança de realidade. O que Antônio Fagundes parece desconhecer, ou ao menos ter esquecido, é que vivemos em um pais que sucateia seus próprios artistas, esquarteja suas obras e os joga na sarjeta. A maioria dos atores sobrevive entre a cruz e a espada, tirando dinheiro e esperança de onde for possível para não desistir. Esses, como Rafael, não entram nas casas do país pela porta da frente através do maior canal de TV. Esses são apenas mais um rosto na multidão, perdidos e cansados dentro do vagão metálico sonhando com uma vida de estrelato que talvez nunca chegue. Esses não podem nem passar na frente da grande sala de espetáculos onde o outro faz teatro em família e sem preocupação, afinal os R$ 100,00 do ingresso farão falta na condução, na mensalidade do curso e até na panela. A nós, pobres mortais, restam as migalhas e as pequenas salas.
Agradecemos diariamente pelos guerreiros que fazem teatro com a unha e a carne, que colocam gente saindo pelo ladrão em pequenos espaços e ao fim do espetáculo passam o chapéu. Sabemos que essa não é a condição que acreditamos e queremos para os artistas, e que todos deveriam gozar do mesmo prestígio e remuneração que Antônio Fagundes, mas enquanto a nossa realidade é outra precisamos continuar acreditando e criando, afinal as impossibilidades não podem nos calar.
Essas pequenas salas, regidas por esses anjos dos palcos, são a prova de que Fagundes está errado. Com ou sem leis de incentivo, na base do desespero ou da porrada, o teatro se mantém vivo. E essa vida está muito mais nesses pequenos espaços do que nas salas esterilizadas onde o ingresso de uma peça custa mais do que uma cesta básica. Em tempos de miséria, medem-se as coisas por comida, não?
Por isso, Antônio querido, eu lhe digo que o teatro vive. E essa arte viva, combatente, apesar dos maus tratos, continua firme e, como o samba, pode até agonizar, mas nunca, nunca há de morrer. É através dele que juntamos as migalhas dessa existência digna de pena que levamos. Afinal, a vida é um eterno esperar por esse abismo, e independente do tamanho desse buraco o que importa realmente é que tenhamos tempos para cobri-lo de rosas antes da queda. E as rosas, essas não conhecem regras: nascem tanto pra Antônio quanto pra Rafael.