Surge Maria Alice Vergueiro. A musa do underground. A grande atriz, a artista. Ela vem apoiada em dois outros corpos, passinhos miúdos, fazendo força para ser firme. A história recente do teatro brasileiro se mistura com essa vida. A história. Nas paredes, nomes. Estão ali também Beckett, Kafka, Sófocles, Tchékhov. Vieram todos, em palavra, em registro – observadores de um ritual, um grande happening. Um teatro, contextual: investigar a morte de alguém que se transforma, de alguém transformador. Não é sobre uma geração, somente. É sobre uma vida inteira, uma existência – e também além, muito além. Evocar a própria morte: onde isso seria possível? Fazer do palco um grande sonho-do-adeus.
A dificuldade em falar, um contraste imenso entre essa mulher e a boca ágil de voz rouca na televisão (Katastrophé, em gravação). O corpo, vocês não sabem?, ele definha. Mas a arte, está provado, ali, é outra coisa, muito outra. É um velório, mas não é uma cena. É uma peça, mas não é nada disso. Que força é essa, que mantém em movimentos de aproximação e afastamento esses corpos? A vitalidade não é isso que dizem ser – estar vivo também não. Morrer, não é nada disso que vocês pensavam. É preciso que alguém nos diga. Um corpo frágil enunciando a canção para falar sobre tudo que começa. Sobre a primeira vez! Sobre o novo. Uma senhora, uma velha, uma mulher que agradece as presenças no velório e, de repente, anuncia o novo, outra vez.
Parkinson, Acidente Vascular Cerebral, o que são vocês, frente a uma energia que desloca a centralidade de todas as coisas? Uma doença e uma coragem: o ponto de encontro, aqui. Uma vaidade tão distinta do egoísmo. Why the horse? Por que todas essas coisas fora do lugar? Um cavalo, no centro do espaço – um corpo coberto de flores. A ordem importa para quem a ordem importa. Porque a vida, pareço ver, agora, pode ser um grande giro ao redor do eixo. É uma cadeira de rodas quem te leva, nesse instante. Mas é transitório, a gente é. Tão difícil quanto ser simples é se saber finito. Tão fácil quanto beijar e dançar é permanecer beijando e dançando.
Maria Alice Vergueiro não finge que vai. Porque é inútil fingir, ela sabe. A gente sabe que as pessoas vão, inevitavelmente. Maria Alice Vergueiro vai.
Maria Alice Vergueiro não finge que vai. Porque é inútil fingir, ela sabe. A gente sabe que as pessoas vão, inevitavelmente. Maria Alice Vergueiro vai. Ela encontra palavras para dizer que está indo – encontra espaço, encontra interlocutores, encontra artistas para irem junto. Maria Alice, menininha. Uma diva, um mito! Ali, deitadinha para ser beijada. Agradecida, louvada.
Hilda Hilst, que ronda o lugar, a todo o tempo, em uma obra chamada Fluxo-Floema diz (e parece, depois disso, um tanto desnecessário dizer outras coisas):
“Olho pela última vez a claridade da minha aldeia. Queria tanto ficar nesse chão inundado de sol, queria até… ser um animal, se não fosse possível ser eu mesmo, queria agarrar-me à túnica das mulheres feito uma criancinha, olho para o sul, para o norte, para todos lados, ah, Bendito, tudo em mim não quer morrer! Agora sei como estou preso a esse tudo que sou, aspiro, duas, três golfadas distendem o meu peito, seguro os ombros de Marta e grito: Marta, Marta, ainda não estou pronto para ficar na treva, ainda tenho tanto amor, ainda tenho mãos para trabalhar a terra, toca-me, vê como essa carne é viva, olha-me, Marta, eu que sou tão você, olha-me, eu que amo a tua força, os teus pés colados à terra, a tua lucidez. É inútil”¹.
(Inútil, sim – e que arte, no fim das contas, não carrega a sua inutilidade?)
¹ HILST, Hilda. Fluxo- Floema. São Paulo: Perspectiva, 1970.