Não se enganem senhores: o mundo, ao menos nos dias atuais, é mesmo essa brincadeira de mau gosto que só piora com o tempo. Quando crianças, temos a retina assombrada pelas belezas da inocência e o coração inundado pela curiosidade que nos desgoverna pelos caminhos que trilhamos. Com o passar do tempo, somos torturados pela rotina e acabamos por embrutecer nossa própria existência. Vivemos entre a frustração e o desespero, com os olhos marejados de raiva e o espírito cansado de injustiças. Viver é, atualmente, uma tarefa hercúlea e incessante que nos leva à morte ou ao psiquiatra. Cada um lida à sua maneira com o desprazer de estar vivo em um mundo que aniquila, incansavelmente, a pouca beleza que ainda lhe resta. Somos filhos de um tempo que extinguiu a paz de nosso espírito através da opressão.
Este que vos escreve sempre preferiu as paixões às obrigações e paga, a todo instante, o preço dessa escolha. Permaneço morto-vivo no mapa-múndi de meus demônios, com um relógio preso na garganta e um cifrão ancorado no peito. Diante desse tormento, é natural que, ao primeiro sinal de afeto, sejamos tomados por uma alegria indescritível. Um sorriso, dependendo do dia, desmonta todas as defesas de nosso coração calejado, fazendo com que a ternura ferva-nos o sangue, bombeando afeto por nossos vasos comunicantes, apud André Breton. Apesar de tudo ainda somos feitos para o amor, por mais que pareça o contrário.
Pois bem, a crença no amor, que aos desavisados parece algo ultrapassado, é uma das maneiras de se manter vivo diante do ódio e o motivo, por mais estranho que possa parecer, pelo qual eu ainda acredito na arte do teatro. Somente o afeto pode triunfar diante da esquizofrênica violência que assola nosso cotidiano atualmente. O amor é, ainda, a maior revolução a qual podemos nos entregar para reinventar a vida, como nos aconselhou Rimbaud.
Sempre me dediquei aos ofícios do teatro como quem escreve uma carta de amor. Aqueles momentos de apreensão e prazer vividos no escuro da coxia sempre me trouxeram à mente aquele garoto ansioso e inseguro, que tornou-se um homem completamente perturbado, a distribuir pelas mochilas da classe suas declarações, quase sempre ignoradas, de paixão. É fato que o coro dos contentes não dá descanso: patrulham nossos prazeres, estupram nossa sanidade e, pasmem, vendem o nosso sossego em troca de nada.
Somente o afeto pode triunfar diante da esquizofrênica violência que assola nosso cotidiano atualmente. O amor é, ainda, a maior revolução a qual podemos nos entregar para reinventar a vida.
Nós resistimos diante de tudo e de todos, crentes na busca pela liberdade. Arregaçamos as mangas e seguimos com a fé em um mundo mais justo e simples para todos, onde seja possível viver e criar sem desenvolver uma úlcera ou alguma síndrome. É bem verdade que conseguimos, a muitas custas, conquistas importantes ao longo da história, balançando as certezas desses senhores carrancudos que teimam em apontar-nos seus fuzis. Tais conquistas garantiram, ao menos por enquanto, o direito de muitos de nós de estarem vivos. Sim, o simples fato de inflarmos nossos pulmões já incomoda a turma do ódio, ou alguém duvida que se possível fosse esses senhores não dariam um jeito de nos aniquilar, como já fizeram em diversos momentos da história?
Na impossibilidade do uso explícito da violência, única expressão que esses senhores conhecem, restou a eles organizarem-se nos esgotos de onde nunca deveriam ter saído para uma ofensiva surpresa. Camuflados por todos os cantos, eles desenrugaram a face e atrofiaram ainda mais o cérebro e, devido ao avanço da estupidez e da desinformação de nosso tempo, recrutam pobres diabos com promessas descabidas de sucesso. Sim, senhores, a tática dos opressores agora é sorrir. Eles sorriem. Sorriem porque já sabem que nossa crença no amor muitas vezes nos impede de reagir. Ficamos sempre entre a cruz e a espada e muitas vezes acabamos relevando opiniões e ações absurdas, por conta de um simples bom dia. Espalhados por todos os cantos, esse homens sorridentes pretendem fazer de nossos espaços de luta, como o teatro por exemplo, um mero acontecimento artístico entre o fim do expediente e o restaurante do fim da semana.
Esse texto, um tanto em tom de desabafo, serve para reafirmar, como já o fiz por aqui tantas vezes, a força do teatro enquanto possibilidade de transformação do cotidiano. Acredito ainda naqueles velhos fantasmas que me cobram coerência na calada da noite. Meus heróis que fizeram de sua vida a maior obra de arte. Pelo amor a eles e ao mundo que habito é que continuo a atuar, escrever sobre teatro e divulgar aqueles que, como eu, entregam sua vida a esse ofício. Que a embriaguez profana de Dioniso turve a visão daqueles que tentam nos dissuadir da tarefa de levar o teatro a todos os cantos onde ele for necessário. Aqueles cantos que choram diante do horror que os assola. Enquanto houver um pequeno grupo ensaiando uma nova maneira de reinventar a vida através do palco, ainda haverá esperança em meus olhos cansados.