A primeira vez em que pisei em um teatro, o breu estava lá. Era um espaço pequeno, judiado, que resiste até os dias de hoje diante da mesma árvore de galhos secos e cravado no mesmo chão de terra que pisei anos atrás. Foi no teatro do Bosque, entre andorinhas e jequitibás. Parece que foi ontem. Lembro exatamente do cheiro de jatobá misturado ao cheiro de pipoca, e de como achei mágico aquele espaço inundado pelo silêncio e pelo aroma do bosque. Isso antes da peça começar. Acho que até hoje é assim. O que me encanta na coisa, mais do que qualquer obra-prima, é o mistério. Um mistério que mora nos segundos que precedem a coisa toda. O mistério que cavalga no breu, e que trotou dentro do meu peito naquele sábado perdido no pouco da minha memória. Isso, esse mistério, é teatro.
Passado e presente são feito duas pontes interligadas que tem como elo principal o nosso peito, morada de nossos desejos e cemitério de nossas lembranças. Revisitar a poeira do tempo é exercício constante até para o mais moderno dos homens. Quem nunca se pegou perdido nos braços de uma lembrança ou já não se deixou levar pelo papo furado da saudade que mora no fundo de um copo vazio? Todos nós, sem exceção. O velho e o novo travam uma luta constante dentro e fora da gente, de modo que com o tempo passamos a não mais diferenciá-los e aceitamos passivamente a peleja que se apossa de nossa existência. Impotentes, vivemos arremessados de cá pra lá feito pedra que repousa em catapulta.
Hoje também é sábado, e nesse dia de sol um casal discute enquanto trafega em uma das mais movimentadas avenidas de Almagro. No banco de trás, sem passar os cintos de segurança, estão três desconhecidos que pagaram para acompanhar tudo aquilo. De três em três, eles passam pelo banco traseiro do carro enquanto o casal, de olho no tráfego, repete as mesmas ladainhas de sempre. O ingresso é pago antecipadamente. Bem longe dali, no verão de Paris, uma família baila contra o vento dependurada num dos prédios mais ilustres da cidade luz. Lá embaixo, às margens do Sena, uma multidão metralha a parentela com os flashes de seus telefones celulares. Click! Click! Click! No Congo, com o olhar rasgado pelo arame farpado, perdida na aridez de um acampamento destroçado e tendo apenas a poeira e o sol quente como testemunha, uma mulher rasga as roupas de desespero declamando os versos de um poeta calado por mais um vírus devastador enquanto alguns moradores do centro da cidade assistem a cena que é transmitida em um dos prédios por onde passam diariamente. Intervenção urbana poética. Cinema marcando o tijolo.
O que me encanta na coisa, mais do que qualquer obra-prima, é o mistério. Um mistério que mora nos segundos que precedem a coisa toda. O mistério que cavalga no breu, e que trotou dentro do meu peito naquele sábado perdido no pouco da minha memória. Isso, esse mistério, é teatro.
No ar, num balão que cruza o céu elétrico de Tóquio, há uma criança. De seu lado esquerdo há um demônio. Do outro lado, o direito, uma espécie de santo. Eles discutem feio na frente do guri e de milhões de pessoas que acompanham a cena através da internet. Solitários diante da luz fria de um monitor. Fausto hitech do século mil e um. É novo, é moderno, é teatro. Sim, isso tudo que foi dito acima também é teatro. Teatro de agora, em cartaz hoje. Esteja por lá o breu ou não. Seja onde for. Goste-se ou não. É teatro novo, sim, e está por aí, e talvez nem seja mais tão novo assim. Mas está aí: no trânsito, na rua, nos prédios; em qualquer canto do mundo. E o mundo?
O mundo é o mesmo. Vasto mundo. Animal feroz chacoalhando a todos feito a mandíbula inquieta de um cão raivoso. É o desgosto. O oco profundo da gente. Mundo bruto e selvagem, nos desorientando entre pântanos desolados e esquinas sombrias como se vivêssemos perdidos numa imagem que se repete eternamente. Espelho distorcido. Compleição indecente saída do canto rouco e distante do Conde de Lautréamont na beira de um gélido rio sul-americano. O mundo é o mundo, a todo instante e em todo canto. Espetáculo que inspira o teatro de ontem, de hoje e de amanhã.
Passado, presente e futuro. O velho e o novo. O velho e o moço. Tudo isso ali, perdido no breu do mundo. Algumas vezes parece que a modernidade nos assalta a tradição, e que acaba trazendo no bucho de sua revolução uma máquina de destruição de nossas lembranças, uma borracha que atropela a nossa memória. Noutras, parece que a poeira do passado vem cobrindo todo o horizonte feito um véu, e que presos aos braços fortes da memória estaremos sempre parados no tempo. Nem um nem outro. Não há fórmula exata nesse jogo, como também não há certeza que atravesse o tempo pra sempre. A não ser, é claro, ele: o início e o fim de tudo. O buraco negro. O nada.
Não tem a ver com técnicas ou exercícios, com pirotecnias ou dólares arremessados pela janela. Nunca teve a ver com orgulho, competição ou vaidade. É o que é, simples assim. Uma sequência ilógica, sem início, meio ou fim. Primeiro é breu, o nada, a escuridão mais profunda e o mais profundo silêncio. O segundo é o corpo, o frio na barriga, a solidão que precede o gesto. Gato correndo na espinha. Em seguida vem o som, a palavra, a canção e o grito. Depois é luz, clarividência, iluminação de todos os tipos. Tão bonito quanto os olhos esverdeados da moça que afoga xícaras na espuma. E isso, isso também é teatro.