Não consigo precisar como ou quando dei de encontrão com a grandiosa fachada do Teatro Cultura Artística, no centro de São Paulo, pela primeira vez. Lembro-me que eu perambulava pelas ruas centrais da capital, andava de teatro em teatro, fixava o olhar em cada cartaz e sonhava com uma possível mudança pra terra da garoa. Chovia, é certo, e a borrasca vinha forte e fina, rasgando o meu rosto num ato de clemência, ajudando a disfarçar as lágrimas diante de meu desejo caipira de tomar de assalto a terra nacional do tablado. Era o Cultura, as lindas pernas de Fernanda Torres e todos os meus sonhos enfiados numa mala mal feita de couro e forrada de pano.
De lá pra cá muita coisa mudou. O Cultura, infelizmente, ardeu em chamas, foi corroído por fagulhas e seus azulejos suicidas, do painel de Di Cavalcanti, pularam no breu da noite morrendo estraçalhados na sarjeta sem nem mesmo atrapalhar o tráfego da cidade que não dorme. Talvez a única beleza daquela época que ainda resista seja a das belas pernas de Fernanda Torres. Essas, apesar do tempo, continuam firmes na minha lembrança, junto ao texto magnífico de João Ubaldo Ribeiro.
Hoje, abrindo o jornal, vejo que o Cultura não tem previsão de reabertura até 2021. Sua fachada, antes magnífica, permanece sombria como seu futuro. O Teatro Cultura padece da doença do tédio, imposta pela impossibilidade que abocanha toda a cultura há tempos. Hoje, coincidentemente, também tive notícias a respeito de Fernandinha, ou melhor, de sua peça: A Casa dos Budas Ditosos, obra máxima de Ubaldo Ribeiro que a atriz toca feito prece desde 2003. O monólogo, narrado por uma baiana de 68 anos, foi adaptado para o palco por Domingos de Oliveira e encontrou em Fernanda Torres sua personificação.
A Casa dos Budas Ditosos é uma dessas obras necessárias, independente do tempo ou do panorama em que a vemos. Uma obra viva, dura, que nos arregaça os olhos e contorce os músculos. O texto de João, a interpretação de Fernanda, a adaptação de Domingos; tudo isso me parece urgente em qualquer tempo, mais urgente ainda nesses tempos sombrios. Pois há alguns dias, infelizmente, Torres anunciou em sua coluna na Folha a suspensão da próxima temporada do espetáculo, que entraria em cartaz em novembro, na periferia do Rio.
E é aqui, queridos, nessa suspensão, que reside a nossa extrema discordância, minha e de Fernanda. Não admito a justificativa fundada nas “brigadas conservadoras”, tão pouco considero que a atriz, gigante, deva se render à “autocensura”. É preciso lutar, querida, e a luta se dá todo dia, rotineiramente, diante da ameaça do abuso, diante do murro seco do não. Render-se a esse tipo de gente seria o mesmo que acorrentar-se à frente do caramunhão esperando a força de sua ira. Isso não, Fernandinha. Isso nunca!
O governo, querida, caiu nas mãos de uma escumalha que pretende converter em critério de cultura a sua própria falta de cultura e contra isso temos apenas o nosso sarampão insistente, antropofágico, que transforma raiva em combustível, e que arrebenta, na cara dessa gente, a louça velha da família de bem que insiste em nos fechar os olhos, a face e os poucos espaços que ainda nos restam. A partir de agora não há espaço para covardes, minha colega, e, mesmo que houvesse, você nunca foi dessas. Coloque seus óculos gigantes, desnude essas pernas lindas e beba seu uísque em tom de afronta. É o que lhe peço, é o que o Brasil clama a você, Fernanda.
O pouco que nos resta é só isso, quase nada, mas insistir nesse pouco já é muito e surte efeito na cabeça dessa gente sem empatia, dessa gente sem graça.
Para as doenças internas, próprias do mal do partido, existe o remédio interno sugerido por Maiakóvski: a autocrítica. Aos artistas, a nós, cabe o desrespeito, o combate, a insistência. A rotina também é resistência! Não podemos comprar o medo, mesmo que ele se anuncie em palavras, ações e atentados. Não devemos nos render ao não, mesmo que ele nos cale, nos maltrate, nos tombe ao chão. O capitalismo é também acumulo de liberdade, e não apenas de poder e capital, por isso não nos renderemos à erosão de nossos direitos. Somos cidadãos, somos artistas, somos gente de teatro e isso basta!
Como o professor deve tocar a sua aula sem medo, as minorias devem continuar na rua sem grilo, os artistas também devem insistir em suas obras, sem receio. Usaremos, se for preciso, a carta do medo, sabendo que toda relação de governo com seus governados é de pavor. Temos coro, temos número e pouco importa se enfrentaremos armas, somos maiores do que isso. Existe, apesar de parecer impossível, um lado positivo desse ataque à cultura: é a certeza de que o poder de transformação da arte ainda bate fundo nesses canalhas. Não nos rendemos aos incapacitados, mesmo aos assumidos, pois não acreditamos em mandatos celestiais e atacaremos com ímpeto e coragem esses moralistas que se recusam a se julgar pelo mesmos padrões morais com que julgam a nós. Somos pedra que rola, Fernanda, não criamos limbo e disso você sabe. Nos rendemos apenas a uma única divindade: nós mesmos, no palco, e jamais estaremos do lado dessa gente que extermina e assassina pelo bem da sociedade que agoniza em seus braços.
Não cabe a todos o papel heroico de levantar a resistência e falar a plenos pulmões. À maioria de nós cabe o pouco, o dia a dia, o pequeno diante da imensidão do mundo e da opressão que se anuncia. Resistimos pelas tabelas: cantando nosso samba no botequim, levando a boca em direção ao desejo e louvando a nossa existência. Por isso, Fernanda, eu lhe peço: apresente A Casa dos Budas Ditosos insistentemente, apresente sempre. É pouco, eu sei, mas o pouco que nos resta é continuar nessa luta mesmo com a faca pousada na garganta. O pouco que nos resta é só isso, quase nada, mas insistir nesse pouco já é muito e surte efeito na cabeça dessa gente sem empatia, dessa gente sem graça.