O acaso funciona de acordo com o vento. É, aparentemente, um processo simples: uma brisa leve toca o rosto do destino. Através dela temos os olhos libertos, a alma inquieta e somos surpreendidos por uma vontade indescritível do desconhecido. Fissurados pelo desejo, buscamos respostas para perguntas que antes repousavam cravadas no inconsciente. Tomamos, enfim, através do acaso, a defesa do novo. Não fosse esse tal, e com ele o gosto que carrega pela penumbra de cada um, estaríamos fadados à estagnação. Simples assim.
É impossível operar essa situação. Estamos sujeitos, a todo momento, aos caprichos do destino e a ele entregamos nossos dias imprecisos. Como fosse essa uma ciência exata, traçamos planos. E os planos, todos sabem, são tão seguros quanto um mergulho no abismo. Por mais que estejamos indispostos a essa ação incontrolável, acabamos sempre reféns da beleza do acaso.
Acima de tudo é preciso mergulhar. Mergulhar sem pesar conseqüências ou resultados, mergulhar pelo direito de deitar o corpo no desconhecido. Mergulhar e simplesmente afogar toda a ânsia que guardamos nesse ato, antes que seja tarde. O homem tem por hábito, graças aos deuses, o mergulho inconseqüente no que for possível. Num desses saltos desavisados, acabei me estraçalhando em uma série de artigos de Fernando Peixoto, organizados no excelente livro Teatro em Movimento, a respeito da arte da mímica.
A série intitulada Encontro com a mímica trata do livro escrito por Jean Dorcy, no original A la Rencontre de La mime, e é uma análise cuidadosa e impecável da obra do fundador do grupo Proscenium. Confesso que, apesar de escrever e pensar quase que diariamente a respeito do teatro, a mímica é algo que sempre me escapou aos olhos e, por conseqüência, tornou-se, de maneira estúpida, uma arte menor para este que vos escreve. De acordo com a análise de Peixoto, esse tipo de reação é natural, e muito dessa imprecisão é causada por conta do tratamento recebido por essa forma de expressão ao longo da história do teatro contemporâneo. Por conta da heresia cometida há anos por esse colunista, e do encanto e curiosidade imediatos que os artigos de Fernando causaram, decidi dedicar as linhas dessa semana a esses atores que fazem da mímica sua expressão maior: os apóstolos do silêncio.
O autor parte do entendimento de que as primeiras páginas de uma possível história da mímica no ocidente foi escrita através de quatro nomes principais: Etienne Decroux, Jean-Louis Barrault, Marcel Marceau e Eliane Guyon.
O livro de Jean é uma revisão razoavelmente detalhada, afinal, tratamos de algo absolutamente complexo e vasto, a respeito dos estágios pelos quais passou a mímica na França, país onde essa arte teve seu ápice e, de acordo com alguns mestres “entrevistados” por Dorcy, sua derrocada. O autor parte do entendimento de que as primeiras páginas de uma possível história da mímica no ocidente foi escrita através de quatro nomes principais: Etienne Decroux, Jean-Louis Barrault, Marcel Marceau e Eliane Guyon. Segundo Jean, essa divisão dá-se por três motivos: através de Decroux e Barrault, a mímica adquiriu autonomia artística e deixou de ser uma expressão auxiliar da dança e da encenação textual. Marcel Marceau, conhecido mundialmente e com passagens por diversos países, entre eles o Brasil, foi o criador da pantomima. E a grande Eliane Guyon foi, ao menos à época da feitura da obra, uma das poucas mulheres a se destacarem nessa arte e, sem sombra de dúvidas, a mais importante delas.
Em suma, Jean Dorcy acredita que o aparecimento e o desenvolvimento da mímica deve ser considerado como uma espécie de “consequência” do naturalismo de Antoine, e passa inevitavelmente pelos grupos Vieux Colombier, Les Comédients – Routiers, Compagnie des Quinze e pelos atores mímicos Jean Daste, Gilles e Julien. Além, é claro, do grupo Proscenium, no qual o autor atuou enquanto organizador. Só então, depois da dedicação de cada um dos citados acima, é que a “expressão mímica” cai no colo dos quatro gigantes dessa arte e tem sua metodologia definida.
Não precisa ser nenhum gênio para perceber que, como em qualquer movimento artístico, a coisa estourou na França por conta do acaso. Marceua, por exemplo, foi aluno de Barrault. Este por sua vez foi completamente influenciado pelas idéias de Decroux na época do Atelier de Dullin. E todos os mímicos dessa época, independente da relação, tem uma coisa em comum: a escola de Copeau. Foi ali que tudo começou.
Na escola de Copeau passaram a ser realizados os primeiros exercícios de improvisação, os chamados relaxation ou Le Masque, devido ao uso recorrente de máscaras por parte dos alunos. A máscara cobria o rosto do ator, normalmente algo neutro e sem expressão, de maneira a proporcionar uma redução de possibilidades. Dessa forma, acreditava-se, era possível exprimir-se integralmente no jogo dramático apenas com o corpo. Assim nascia a mímica em seu estado bruto.
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A escola funcionou de 1921 até 1924, quando seu fundador, um católico fervoroso, encerra as atividades por motivos religiosos. No currículo, além da própria teoria teatral, constavam ainda os cursos de instinto dramático, história da civilização grega, gramática, canto, música, dança clássica, escultura e acrobacia. A dedicação era integral e os estudantes passavam ao menos dez horas trabalhando diariamente. Algo bem diferente das milhares de escolas de teatro espalhados pelo mundo afora nos dias atuais.
Voltando à evolução da mímica, Dorcy define os elementos básicos dessa arte em atitude, gesto e movimento. A atitude, de acordo com o autor, “é como um drama condensado. É perfeita, completa, e acaba sendo aquela imagem que indica de onde se vem, o que se é e aquilo que se vai fazer”. O gesto, por sua vez, está longe do impulso natural. Não trata também de um mero reflexo psicológico. Elaborado pelo pensamento, o verdadeiro gesto é fruto de uma arquitetura própria. Marcel Marceau diz a respeito que “o gesto que não vem justificado liricamente não passa de um desenho no espaço”.
Resta o movimento, e quando dizemos movimento é preciso que esteja entendido que ele também trata do próprio espaço e é, por natureza, limitado. Afinal, é através dessa limitação do espaço físico que o espaço poético deve libertar-se ao máximo, como fosse um foco em infinita expansão pelo tempo. Essa tarefa, evidentemente, cabe ao intérprete e é, diga-se, uma missão hercúlea.
Na próxima semana, darei continuidade à série sobre esta incrível arte.