Ao escrever ou tratar de teatro estamos também tratando de diversos outros assuntos. São inúmeros os temas que “flutuam” em torno da ideia de um palco negro onde tudo é possível. Pode-se falar, por exemplo, a respeito das diversas metodologias e teses desenvolvidas através dos tempos na tentativa de aprimorar ou compreender o exercício dessa arte. Podemos também tratar de algumas “artes auxiliares” à “feitura” de um espetáculo, isso sem o intuito de considerá-las menores ou menos importantes, é claro.
Nesse caso poderíamos incluir, por exemplo, as artes plásticas, a história da arte e talvez até a própria dramaturgia, dentre tantas outras. A verdade é que ao abordar o teatro enquanto tema [highlight color=”yellow”]não temos a obrigação de nos limitar apenas a esse palco escuro[/highlight], mas sim de nos apegar às possibilidades infinitas que vivem nessa escuridão. De todas essas possibilidades, e lembremos que elas são, como já disse, infinitas, existe apenas uma que está sempre ali, atrelada ao exercício cênico feito a morte no cangote de quem vive: o tempo. Tempo e teatro estão entrelaçados e é impossível tentar romper esse emaranhado que os une de maneira disforme e caótica.
Tempo cênico, tempo de comédia e até o imprescindível tempo pro cigarrinho no meio dos ensaios. Pra todo lado que se olhe nesse bendito palco o seu vazio é preenchido por ele, o eterno tic-tac de Chronos que nos persegue. Tempo pra estreia, tempo de espera e até mesmo aquele tempo bom, desanuviado, quando o espetáculo é a céu aberto.
Por mais que lutemos, seja no teatro ou na vida, é impossível fugir do tempo. Ele já impregnou a poeira de nossos livros, já laceou nossa pele cada vez mais rugosa e até amoleceu nossos músculos preciosos e anteriormente duríssimos. Seus grãos arenosos já sufocaram o resto de nossa esperança e seus dentes afiados já devoraram a maioria de nossas lembranças. O tempo é luxo pra quem já viu a vida passar diante dos olhos e é tormento para aqueles que tem pressa em viver e sabem que ainda falta muito tempo pro tempo voar. Ao ator, e a todos os homens de teatro, esse tempo é calma. É oportunidade para lapidar, trabalhar o ócio. O tempo no palco deve ser um relógio manco, quase parado, onde as horas ao invés de escorrer tomam a forma de espetáculo.
O tempo no palco deve ser um relógio manco, quase parado, onde as horas ao invés de escorrer tomam a forma de espetáculo.
Mas o mundo mudou. Estamos sempre conectados, logados, ligados e alucinados. Como as informações ao correr do dedo na tela do telefone móvel, a vida também ganhou uma velocidade frenética e incompreensível. Não há mais em nosso cotidiano o tempo que para. Nunca mais ficamos solitários pensando no tempo que não volta mais, afinal temos “amigos” a um toque de distância e o apito constante da vida cibernética nos lembra que hoje somos todos populares em meio a fantasmas digitais. A vida passa a passos largos e ninguém para para ver o seu desfile patético.
Tal qual a vida, hoje em dia o teatro também corre, tem pressa. É pensado e inventado em ritmo acelerado. Ao que parece, e isso pode apenas ser resmungo de um velho ultrapassado, o teatro moderno abraçou a velocidade e deixou de lado a cadência. O negócio substituiu o ócio no país dos empreendedores artísticos. Produções relâmpagos saem e entram de cartaz sem que os figurinos tenham a chance de serem ao menos lavados. Atores mastigam emoções e vomitam palavras feito um homem diante do prato que aguardava há anos na mesa de uma birosca à beira da estrada.
Justificativas e contrapartidas são inventadas diariamente na ânsia do próximo prêmio, à espera do próximo depósito, na esperança de mais um mês de temporada. [highlight color=”yellow”]O teatro esqueceu que é uma arte antiga, de cabelos brancos e olhar quente, e que paciência e calma são virtudes e não vícios de vivência.[/highlight] Afinal, pra que tanta pressa se sabemos que o fim da estrada é sempre o precipício? Precisamos de mais tempo, nem que o usemos para mastigar palavras e pedras, nem que o gastemos para esquecer que é o próprio tempo que nos cerca. O tempo de um suspiro pode significar um século de paz.
E o tempo da cena, tem receita? Não! O tempo do teatro é o peito, e talvez por conta disso o seu companheiro eterno seja mesmo esse desespero. Como todos os pobres habitantes dessa terra inóspita, também nos perdemos pelos ponteiros da existência em algum momento e é preciso dar um tempo pra que tudo se encaixe, pra que o peito se acalme e a cena se ajeite. Tempo não é dinheiro, é sossego. É a brisa que passa diante dos olhos já quase cerrados mas que ainda os acaricia com a esperança de romper a barreira desse velho guerreiro que é, acima de tudo, sentença de morte. O tempo e cena são indissóciaveis, e travam uma batalha eterna diante de nossos olhos, em cima dos palcos.
É certo que essa batalha está perdida desde o berço, e que a cada nova investida acabamos por deixar escorrer por entre os dedos mais tempo em busca de derrotar esse inimigo imbatível. O tempo corre, amigos, e persegui-lo é que é perda de tempo. A saída? Quem sabe… na verdade, pouco importa! Se ao tempo cabe sufocar-nos diariamente, ao homem cabe enfrentá-lo mesmo que sem esperanças. Cada um, a sua maneira, busca uma forma de “ganhar do tempo” e talvez a eternidade esteja mesmo escondida por aí. Na dúvida seguimos. Ainda estamos reféns desse tempo tormento, é verdade, mas com a certeza de que há, dentro das possibilidades daquele escuro no palco, algo que nos permitirá romper aqueles braços flácidos que abraçam o universo e encenar a nossa própria miséria, afinal fazer teatro é cortejar o infinito.