É preciso encarar o abismo, apesar de sua assustadora profundidade e de sua clara escuridão. A vontade da queda, do suicídio, é uma visitante frequente dos desesperados. Suportar a vida não é tarefa das mais fáceis, ainda mais quando essa vida tarda em seu bater de asas pelo peito. Ali, diante dele, desse abismo perene, quase sempre cedemos aos seus caprichos e nos entregamos a esse infinito incerto ao qual a queda nos leva. Quase!
Vez ou outra, quando no precipício, somos assombrados por uma força vital que nos segura no último momento. Uma força bruta que contagia e ilumina. Através dela percebemos que a impossibilidade de viver não significa necessariamente morte, mas sim a possibilidade de renascer, afinal, o grande barato da vida é recomeçar.
Recomeçamos por pura insistência, por teimosia ou por necessidade. Recomeçamos, porque não se vive eternamente de joelhos. E todo recomeço guarda seus segredos.
Muitos nessa condição acabam recorrendo a religiões ou ideologias na busca de uma razão para a existência, embora em ambos os casos essas razões possam se tornar alienantes. A verdade é que todo ser humano tem seu abismo particular, feito de dúvidas, fantasmas e lamentações.
Cada tempo guarda suas próprias fissuras, suas fendas abertas que acabam por se transformar em abismos intransponíveis, ao menos à primeira vista. E no nosso tempo, diante dos últimos acontecimentos, um desses abismos passa a tirar, pouco a pouco, o chão de cada artistas. De início, a vontade de acabar com a impossibilidade através do salto, da queda, é sedutora. Depois do susto passamos a perceber que nada é impossível e que, como diz a canção, se há um muro que separa há também uma ponte que une. Os poetas estão novamente exilados da república, como na época de Platão, mas há uma ponte de sonhos em construção contínua, e é justamente nessa ponte que apostamos todas as nossas fichas.
A velha história da República de Platão é conhecida. Não cabe a mim explicá-la, afinal, essa tarefa hercúlea cabe a filósofos que têm dedicado sua vida e obra a compreender os mistérios que envolvem o episódio grego, no entanto, em meio a anotações sobre a questão não pude deixar de reconhecer no episódio da expulsão dos poetas da República de Platão algumas semelhanças com a recente, e crescente, perseguição a alguns artistas, como por exemplo o episódio da prisão do ator Caio, tema dessa coluna na semana passada.
O início do imbróglio, pelo que parece, veio da necessidade do filósofo governar ou do governante se tornar um filósofo na busca por uma cidade ideal, apud Sócrates.
Pois bem, dessa necessidade surgiu a compreensão de que a arte “correta” fosse útil à boa formação moral. Diante disso, e de uma radicalidade extrema, ocorreu a expulsão dos poetas dessa república, ou seja: não existe uma censura a obras no caso da poesia, aplica-se então a censura ao próprio ofício de poeta. Há, por óbvio, um desprezo por parte dos governantes aos artistas poetas de modo geral. Muitos pensadores usaram o episódio para compreender e pensar a função do artista, entre eles é preciso destacar Nietzsche.
Há, por óbvio, um desprezo por parte dos governantes aos artistas poetas de modo geral.
O alemão disse, com toda razão, que a estética nada mais é do que fisiologia aplicada. Se a arte fala aos sentidos, consequentemente falará ao corpo. Seguindo essa linha de raciocínio, através de meu entendimento, a razão de Sócrates bate de frente com o ilusionismo da própria arte, e de certa maneira até mesmo com os sofistas, evidenciando uma espécie de “traição” da ideia, uma traição da verdade contida na experiência estética. Daí vem o perigo da arte para qualquer tipo de governo.
Platão, por exemplo, defendia a música enquanto forma de educação moral dos jovens, numa perspectiva de dádiva apolínea, afinal, o grego estava ciente dos perigos do elemento Dionisíaco para a ordem social. O delírio é o antídoto da lei, ou das boas leis como diz Sócrates, portanto, o artista que nega a razão não pode servir o Estado, afinal, sua obra visa, através de efeitos psicológicos, afirmar a própria vida (tragédia). Aos que desejam servir ao Estado, cabe uma função moral positiva.
Em pleno 2016 ainda existem poetas, da cena ou do verso, excluídos por conta de seu próprio ofício, e isso não pode nos legar somente o flerte com o velho e conhecido abismo. Sócrates afirmou, também, que a mentira pode ser útil ao homem. À época, como no Brasil atual, os verdadeiros governantes deram-se a autorização para mentir e oprimir em nome de uma moral completamente imoral. A tal expulsão nos dias atuais se dá de outras formas, é verdade, no entanto, a revolta existe para nos guiar através dos caminhos da insatisfação quando temos a existência violentada.
A fome de absoluto exige modos de rebelião, por isso o teatro precisa se reinventar e reafirmar a sua liberdade. O teatro há de ser nos dias atuais ataque frontal, beijo, alucinação, visões, carícias, soco no estômago; ou não será nada!
É preciso extrair o teatro do fundo do sonho, em uma radical e sistemática rejeição da moral do espetáculo. Quando somos expulsos das grandes salas a ponta pés, precisamos fundar uma cosmologia da sarjeta. Uma anarquia da cena onde quer que ela esteja.
O espetáculo enquanto defesa intransigente da revolta absoluta e do amor sem cinto de segurança. Fundar no fundo de nós, diante do abismo, uma obra viva que nos impulsiona pra fora desse estado de sítio onde nos encontramos. Uma luta contra a polícia da cultura.
Só assim conseguiremos fazer parte de algo digno de memória, ao invés de figurarmos listas de contemplados por migalhas provisórias que nos oferecem enquanto esmola.
Vivamos sem cintos de castidades ao menos quando o assunto for arte, pelo amor de Baco!
Os tempos andam obscuros, por isso, é preciso cavar túneis de resistência. Quando contarem a história de nossa época, alguns pesquisadores mais atentos deverão rastejar pelos subterrâneos da cultura. Em meio aos lacaios sem rumo, perdidos entre cifras e conivência, eles avistarão um pequeno grupo de anjos perdidos. Jovens tragados pelo delírio, que se deixaram seduzir pelos olhos de fogo de uma serpente anônima que carrega o caos na língua bifurcada. Homens sem geração, sem pudores, sem grana, sem bússolas ou passaportes. Homens que se dispuseram a enfrentar, de peito aberto, o horror. Loucos que vagam pelo olhar insone da noite e atiram balas de absinto pelos cantos das cidades.
Poetas, marginais, terroristas, artistas, santos e depravados; esses serão os nossos grandes personagens. Eis aí, à margem, a nata de nosso próprio tempo. Juntemo-nos a eles numa república própria desses “vagabundos” imprescindíveis, antes que seja tarde.