Confesso aos caros leitores que relutei até o último segundo em escrever a coluna dessa semana. A dúvida, essa inimiga fugaz de todo ser humano ansioso, fez-se presente em meu pensamento até o momento em que me debrucei sobre o teclado. Faltava-me, ainda que eu resistisse a essa ideia, inspiração para organizar as palavras e os pensamentos enquanto a alma era açoitada pela angústia nossa de cada dia. Apesar de haver a possibilidade da troca, penso que é preciso, mesmo na eminência do fracasso, manter firme a posição de criar para se estar vivo. Por isso, decidi escrever sobre a causa desse pânico que se instalou em minhas trêmulas mãos hesitantes.
Por mais que eu queira justificar o estopim dessa crise dizendo que a náusea da existência me fadiga o viver, é preciso jogar limpo e admitir que durante essa semana eu voltei meus pensamentos para dentro do limbo de meu umbigo, e vos esclarecer sobre o real motivo desse repentino tormento. É aquilo que assola todo criador diante do abismo de uma obra viva: a estreia.
Uma estreia nos tira o sono feito o raiar do sol em uma manhã de domingo. Diante dela, o coração palpita e a boca seca. As falas escorrem dos lábios nervosos, feito o orvalho nos primeiros dias de primavera. Somos tomados pela ânsia de subir logo ao palco e resolver essa peleja prazerosa que é o exercício do teatro. O tempo torna-se incalculável, impreciso. Transborda pelas mãos que teimam em agarrar o nada. Vejam só o estado em que me encontro ao bater as teclas desencontradas desse assombro.
O ator, peça fundamental de nossa arte, é sim um privilegiado. A sensação extasiante desse pequeno instante, que dura uma semana no meu caso, é a recordação, por exemplo, da primeira noite de uma paixão. Explico-me: ficamos condenados eternamente a sensação do prazer atrelada à incerteza. É verdade que a segurança provém do trabalho. Ensaiamos exaustivamente cada gesto, lapidamos como ourives as palavras preciosas de nossas falas, vivemos através dessa expectativa que, pouco a pouco, nos mata. Sim, é preciso morrer para estar em cena. Uma morte inicial, ritualística, que nos transforma em cavalos de personagens que, em si, são maiores que a nossa própria existência.
Sim, é preciso morrer para estar em cena. Uma morte inicial, ritualística, que nos transforma em cavalos de personagens que, em si, são maiores que a nossa própria existência.
Todo teatro guarda uma beleza inacabada que só se completa em cena, e todo ator ao subir no palco pela primeira vez, e isso ocorre em cada espetáculo do qual fazemos parte, sobe sem a certeza de que deve mesmo seguir adiante. O motivo? Não é possível racionalizar paixões. É preciso se entregar de corpo e alma as tentações de Dioniso e assumir a sina de poeta da ribalta. As borboletas executam coreografias impensadas no útero do espírito do artista amordaçado pela sensação de missão cumprida. Não se enganem com minhas metáforas, a sensação é das melhores possível. Ao final, entre suor e lágrimas, partimos sempre com a certeza de que o palco é a única vida possível. Assim como sabemos que o único refúgio conhecido é, sempre, o sorriso da mulher amada.
Há no idioma francês uma expressão, um tanto quanto batida, para designar o orgasmo: le petite mort. Tal qual o ápice do prazer, a estreia, para este que vos escreve, também é entendida como uma morte iniciática. Reinvento-me a cada espetáculo na busca de conquistar no palco o que me é negado na própria vida. Faço teatro como quem procura, insistentemente, uma saída pra esse mundo desalmado. Ao fim, diante do vazio que nos toma de assalto após uma temporada, recolho-me e organizo novamente o peito estraçalhado para me entregar a outro espetáculo. Cada canto da peça anterior segue seu destino, feito o vento que insiste em soprar diante do muro de concreto. Talvez seja uma batalha perdida, mas o que seria de nosso inferno se não fossem essas insistentes brisas? Para aqueles que preferem o ensolarado calor do conformismo, meu máximo respeito. No entanto, eu sou como essa gente teimosa, e sigo caminhando a favor dos ventos.
Desejem-me sorte…