Há uma bomba relógio entalada na garganta da humanidade! Vivemos, e isso é incontestável, o tempo da barbárie. Choramos lágrimas de sangue e lama diante de tragédias, anunciadas ou não, que insistem em esfregar na nossa cara o quão detestável é a raça humana.
Crivados pelas balas do terror, temos o espírito explodido numa existência suicida entre o relógio e o cartão de crédito. Tempos difíceis exigem medidas desesperadas, e é absolutamente desesperador quando a passividade nos impede de seguir adiante. Quando somos assolados por nossa própria miséria, o único caminho possível é nos redescobrir, reconhecer a nós mesmos através do caos em que transformamos a vida. O artista é, ao menos alguns o dizem, um ser sensível diante do mundo. É dessa sensibilidade aflorada que germinam obras e florescem ideias, no entanto, é através dela que surgem fantasmas e tormentos que estraçalham, pouco a pouco, a capacidade de reação. Um artista ajoelhado é um ser humano estraçalhado por seu próprio tempo.
Não vivemos tempos adoráveis. A humanidade volta a se cercar entre muros. A estupidez e a violência dominam as ações dos poderosos, que se banham em sangue e dólares enquanto crianças são varridas pra dentro do tapete da guerra. Temos os pulmões obstruídos pela lama tóxica da impunidade. Fosse vivo, é certo que Sartre corrigiria sua célebre frase e decretaria que o inferno é, na verdade, o mundo que construímos, ou melhor, destruímos.
Pois bem, diante de tantas situações absurdas, é preciso que artistas se posicionem. É preciso inundar as redes, as ruas e os teatros com obras vibrantes, que se posicionem diante de tudo e de todos. Acima de tudo, é preciso semear discussões que possam varrer de nosso céu essa neblina que nos tapa, completamente, a visão do futuro. Digo isso, para entrar no assunto polêmico da semana: o cu!
É preciso inundar as redes, as ruas e os teatros com obras vibrantes, que se posicionem diante de tudo e de todos.
Muito se disse esses dias, ao menos nas redes sociais, sobre a performance Macaquinhos, baseada no livro O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro. A performance foi apresentada na Mostra Sesc Cariri de Culturas, em Juazeiro do Norte, na última quarta-feira (18), e, desde então, o reboliço foi armado em praça pública cibernética. Segundo o grupo, a montagem baseia-se em três pilares para a sustentação de sua ação: “aprender que existe cu, aprender a ir para o cu e aprender a partir do cu e com o cu”. Como pode-se imaginar, atores exploram seus corpos, em especial o orifício que já foi cantado lindamente por Rimbaud e Verlaine.
E o “Fla x Flu” foi dividido entre detratores, que com o dedo em riste sem vaselina, acusam os artistas de usarem dinheiro público (confesso que não confirmei tal informação) destinado às artes para criarem uma “obra imoral que nada tem de artístico”; e defensores, que acreditam na liberdade de se produzir, ou introduzir, o que bem se entender onde quer que seja de acordo com seu próprio gosto. Para acalmar os ânimos, e tapar os buracos da discórdia, o Sesc soltou uma nota de esclarecimento a respeito da apresentação, a fim de minimizar o imbróglio.
Não quero e nem posso, já que ainda não assisti à performance, julgar a qualidade ou a importância do trabalho apresentado, tão pouco colocarei em dúvida, como muitos fizeram, os artistas envolvidos na encenação da obra. Admito, mesmo correndo o risco de ser taxado de ignorante ou ultrapassado, que tenho certa dificuldade em compreender algumas obras, sobretudo quando estão fora de minha zona de conforto, como no caso das instalações, por exemplo. Acho que a genialidade de Duchamp, evidentemente inconteste, serve de cartão de visitas pra muita picaretagem, principalmente depois da criação das leis de incentivo, que são imprescindíveis, mas também abriram os portões para caça-níqueis e esquemas que acabam por deixar a obra em si em último lugar. Ao mesmo tempo, reconheço que já me encantei por obras que, à primeira vista, me causavam engulhos. Apresentar uma obra ao público envolve sempre o risco, e por isso, é encantador subir ao palco com uma obra na qual se acredita realmente.
Quanto à questão do protagonista da discussão, é preciso dizer que o buraco, esse danado, é mais embaixo. Tabus precisam ser colocados em xeque sim, é claro, e acredito que envolvendo esse famoso orifício a coisa fica um pouco mais instável. Sempre tive a impressão de que esse nosso “traço” anatômico ficou renegado ao breu de nossa anatomia, por isso, muitos têm pouca percepção de sua existência.
Reconheço no corpo humano um paraíso a ser descoberto, todos nós somos um oásis a ser aproveitado através das delícias que a carne ardente guarda. Se eu sou o outro, o corpo do outro pertence também a mim, e o meu corpo pertence também ao outro. Somos todos de todo mundo, e devemos nos desbravar através das línguas, dos dedos e dos desejos, principalmente. A este que vos escreve, não causa nenhum choque ou coisa do tipo o fato de termos corpos, e todas as suas possibilidades, em transe no teatro. Reconheço que, pelo que lembro do livro de Darcy, fica difícil compreender a analogia que existe entre a obra e a performance, e isso me deixa com vontade de, se for possível um dia, conferir a apresentação. Nada além disso. Nenhuma revolta, nenhuma mesmo, mas talvez a dúvida em relação a uma arte, muitas vezes prepotente e vazia, que se produz hoje no Brasil com a desculpa da busca pelo novo, pela ruptura; assim como a certeza de que nossa sociedade é, cada vez mais, conservadora e cheia de couraças e cintos de castidade a nos enclausurar a alma.
Fica a impressão, ao menos ao meu ver, de que diante de tanto horror, de tanto abuso e de tanta desgraça, qualquer intervenção artística deveria levantar debates maiores do que o referido rugoso. Acho, é evidente, que a liberdade há de ser louvada e defendida, acima de tudo, em todas as ocasiões. Entendo que é preciso sim tocar, e certas vezes adentrar, nossos tabus para transformá-los em tótem, e que a delícia do existir vem da possibilidade de tocar e ser tocado através do desejo que arde e nos toma o juízo. Sou, como todos nós, refém dos impulsos que me guiam pela vida, e através deles também me compreendo e me transformo.
A tal polêmica, a meu ver, é ultrapassada, se toquem! Diante dessa situação, prefiro calar-me por um instante. Às vezes é preciso cultuar o silêncio, principalmente quando percebe-se que certos assuntos não valem a pena há tempos. Entre discutir os limites de uma performance e meter o dedo onde não fui chamado, prefiro me ausentar da loucura do mundo no colo daquela que colore meus dias. Ali, mesmo ciente de toda barbaridade que nos cerca, silencio em um mundo que, ao menos aos meus olhos, é um pouquinho mais encantador. Acato, com olhar aguado, o pedido de silêncio de Noel e me dedico, por um minuto exato, à construção de um mundo que penduro no horizonte e hei de perseguir enquanto os pés aguentarem a caminhada. Por hora, caro Noel, visto também o luto incolor da saudade enquanto aguardo dias melhores para todos nós.