A frase, belíssima, que dá título a essas linhas é de autoria do poeta russo Vladimir Maiakóvski. Em sua peça teatral Eu, Vladimir Maiakovski, obra onde o próprio poeta é um dos personagens, há uma passagem memorável: no primeiro ato, entre as cortinas de veludo amarelo e a enorme tora de pão dourado, Vladimir trava uma discussão com alguns velhos gatos, um homem sem orelha e um outro homem, esse de rosto descontraído. Na dúvida entre quebrar ou amar as coisas, onde gatos e homens se misturam em devaneios e imagens, o poeta, de braços abertos e alma escancarada, brada no centro da cena essa boniteza de nossas letras. Bravo, bravíssimo! Impossível não se contagiar pela constatação romântica e precisa do poeta suicida. Nas fibras do coração, apenas aquilo que pode alterar os rumos do mundo. E alterar para melhor, evidentemente.
Debruçado sobre o excelente primeiro exemplar de O Percevejo, revista de teatro, crítica e estética do Departamento de Teoria do Teatro e da Escola de Teatro da Universidade do Rio de Janeiro (Uni-Rio), de 1993, eu buscava inspiração, calma e uma iluminação para iniciar um texto. Buscava talvez a possibilidade de brilhar como um farol, dividindo o slogan com o sol, e parado, diante da grande publicação, eu pretendia estudar a obra de Vladimir, até então desconhecida para este que vos escreve, para redigir um artigo a respeito da parceria entre os dois gênios russos: Maiakóvski e Meyerhold. Maravilhado pelos versos incendiários daquele “eu” desconcertante, pensava a respeito das tais “fibras coronárias”, quando fui interrompido por uma pedrada. Uma pedrada violenta, daquelas que estraçalham a nossa alma, que despedaçam a nossa esperança e que fazem cacos de nosso futuro. Uma pedra, dessas tantas que existem perdidas na rua, com endereço certo: o peito de todos que defendem o teatro, a liberdade e a tolerância. Uma pedra carregada de ódio. Uma pedra que carrega em si todos os horrores do mundo. Uma simples pedra, pesando no ar, em sua jornada de opressão rasgando o vento.
Um homofóbico, um covarde de mãos ágeis e alma pequena, atirou uma pedra em direção aos atores na apresentação da performance O Campeonato Interdrag de Gaymada, no Festival de Curitiba. A apresentação é obra do grupo Toda Deseo, de Belo Horizonte, que tem um histórico de lutas e resistência em defesa e pela visibilidade da comunidade LGBT. Segundo membros do próprio grupo, eles foram avisados sobre possíveis ataques na cidade onde há uma crescente no pensamento conservador que busca, através da violência, “combater” homossexuais, negros, e mulheres, por exemplo. Tentam matar no outro aquilo que não admitem que viva neles próprios: o amor. Através da covardia, munidos de pedras, paus e muita ignorância, assolam madrugadas buscando vítimas para saciarem sua vontade de sangue. Intimidam, gritam, espancam e matam. São assassinos, muitos deles jovens, guiados por ideias totalitárias de mundo. Vivem na esperança de serem apenas eles a habitar o globo e atentam contra tudo e contra todos que discordam de suas ideias absurdas, de seus suspensórios horrorosos e de suas botas com sangue ressecado.
No caso de Curitiba, em especial, o que choca ainda mais é que a violência aconteceu durante um dos maiores festivais de teatro do Brasil. No nosso espaço, na nossa rua!
A tal pedra, que acabou atingindo um espectador, na verdade foi atirada contra todos nós. Mirava nossos sorrisos, nossos beijos, nossos sonhos. Tentava, em vão, arrancar de nosso corpo mais do que sangue. Tentava arrancar de nós a vontade de viver. Não conseguiu! Em tempos onde o teatro é utilizado para levantar bandeiras de luta e defender minorias de poder, não é de se estranhar que um ser ignóbil tente nos calar na base da porrada. Não é a primeira vez que precisamos lidar com a truculência e a estupidez dessas pessoas que defendem um ódio cego, que tem a mentalidade presa à idade da pedra e que insistem em aniquilar o amor. Não é a primeira e tampouco será a última, infelizmente. No entanto, esquecem-se os covardes que somos feito de um barro forte, pesado, e que esse tipo de atentado só faz nos unir em defesa do que acreditamos e daqueles que estão do nosso lado do front. No caso de Curitiba, em especial, o que choca ainda mais é que a violência aconteceu durante um dos maiores festivais de teatro do Brasil. No nosso espaço, na nossa rua! É evidente que os bandidos perderam a vergonha e o medo de agirem de tal maneira nessa terra de justiceiros histéricos e moralistas fervorosos. O Brasil, seja no frio de Curitiba ou no calor de Manaus, caminha a passos largos para o abismo.
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Maiakóvski, que acabou se suicidando por conta dos absurdos do stalinismo, foi um defensor fervoroso da liberdade. O poeta russo, em sua obra teatral, muitas delas levadas ao palco por seu parceiro Meyerhold, sempre tomou partido das minorias e combateu a opressão, em todas as suas formas. Em Eu, Vladimir Maiakóvski, por exemplo, as crianças-beijo, cada uma com sua lágrima, resistem em série, juntas. Na peça O Percevejo, obra-prima de nossa encenação nas mãos de Luiz Antonio Martinez Corrêa, um coração estraçalhado pulsa até se estourar em mil pedaços no início da peça. Somos sempre isso, coragem e coração, ou acabamos não sendo nada.
Uma pedrada assusta, agride e revolta, mas nunca, jamais, deve calar. Todos que tiveram a têmpora na mira do terror devem se unir em defesa do direito de sermos como bem entendermos, e de podemos tomar as ruas e praças com nossas obras, nossos corpos e nossos amores da maneira como são. Ninguém tem o direito de nos dizer o que fazer a não ser nós mesmos e jamais vamos admitir que o medo nos fala refém dessas ideias nojentas.
Sabemos que os tempos sombrios tendem a piorar, e que se bobearmos seremos cassados em praça pública por essa gente que não admite a diferença, por isso mesmo temos de resistir. O lugar o teatro é a rua, sim, mas a rua também é domínio e direito de qualquer ser humano. A coluna “Em Cena” repudia o ocorrido no Festival de Curitiba e se solidariza com os artistas que tiveram a sua liberdade estraçalhada em praça pública. Sabemos dos perigos existentes nos atos de opressão, de pedradas a assassinatos, e não permitiremos que o terror cale a nação mais uma vez. Que a pedrada de Curitiba ecoe por todos os teatros do país e que nós, munidos dos paralelepípedos da revolta, estraçalhemos a vidraça da intolerância. Afinal, sabemos do que somos feito e o que temos dentro do peito. Avante!