Esse é o primeiro texto de 2016. Hoje é dia 12 de janeiro. Curitiba está vazia. Os teatros também. Alguns dizem que vai ser assim até depois do carnaval. Outros, tem certeza de que o marasmo acaba só no Festival de Curitiba. Há quem diga outras coisas.
Quando comecei a escrever a coluna, aqui n’A Escotilha, em março do ano passado, ouvi de algumas pessoas (amigos, em sua maioria) que uma cobertura semanal de teatro talvez me exigisse “muita criatividade”. Todos diziam que em algum momento eu não teria sobre o que escrever. Diziam que, talvez, durante algumas semanas eu teria de me dividir em vários para acompanhar tudo, mas que, em outras, eu estaria totalmente órfão e desabrigado. Falavam sobre as “poucas” produções e sobre um certo “vazio” que se refletiria em várias instâncias. Isso não é verdade, ainda que não seja totalmente mentiroso. O que eu sinto, agora, é que quando falavam sobre essa tal criatividade, eles se referiam a essa situação: nada para ver. Mas o que isso quer dizer, exatamente?
Bem distante da inventividade que esperavam de mim, faço uso de um recurso metalinguístico para contornar o deserto que Curitiba se torna nessa época do ano: minha criatividade reside na negação de criar a todo custo materiais que afastem os fatos irremediáveis, que além de se apresentarem diante de nós, nos estapeiam. Ás vezes, não dá para escapar, e isso não quer dizer que uma entrevista, um texto “especial” ou algo do tipo não fosse mais ou igualmente importante e producente. Eu faço uso da liberdade que esse espaço me dá para tocar em assuntos que outros meios não tocam, propriamente – porque alheios, desavisados, “distraídos” ou “impedidos” de serem “francos”. Isso é uma escolha que, estou certo, deve ferir algum preceito jornalístico.
Esse não é um texto sobre o trabalho crítico que eu desenvolvo aqui e tampouco uma autocrítica sobre a coluna em si– “esse” texto ainda chegará, o plano é, quando o site e a Intersecção completarem um ano, elaborar um escrito que tenha uma função de autoanálise, por assim dizer. Mas, por hora, gostaria de adiantar uma pequena parte disso.
Contra essas certezas, de que o teatro curitibano é feito de ausência, instabilidade e inconstância a coluna parece revelar que “é possível!”. É possível o diálogo continuado. É possível habitar o teatro, fazer dele estímulo, material e consequência para se pensar a arte e o mundo, tanto aqui quanto em outras localidades.
Isso não significa que seja tarefa fácil. É necessária a desconfiança, a torção no nariz, doses equivalentes de brutalidade e ternura. É indispensável o deboche. É preciso atenção à luta de todos aqueles interessados no fortalecimento de um cenário artístico-político-social e semelhante atenção para aqueles que almejam somente os aplausos – dois grupos igualmente legítimos mas que fazem com que seja possível dizer que é totalmente desnecessária a descrença, gratuita e paralisante, a conivência com pequenezas, as mediocridades e as pequenas-grandes-corrupções diárias. É preciso saber ficar quieto e é preciso saber que essa-tal-de-classe-artística é “ótima em picuinhas” e, muitas vezes, em uma desarticulação “ocasional” (isso é um eufemismo-irônico). É imprescindível saber gritar.
“Queremos ser cada vez mais provençais e acabamos sempre mais provincianos”, Laura Erber disse algo parecido em uma obra chamada Esquilos de Pavlov e eu sempre achei que esse trecho poderia ser usado para se falar sobre os modos de operação que Curitiba adota como sendo dela (uma piada. Em Curitiba há gente e é isso a cidade: gente). Esse ar provinciano, no que se refere ao teatro, não é porque tenhamos ímpetos e produções insuficientemente vanguardistas para sair de um quadro considerado limitado e limitante, restrito demais para as potencialidades das criações daqui. Tudo é sempre um tanto mais complexo – e não cabe a ninguém explicar, culpar e/ou “consertar”: estamos falando de arte.
Estamos falando de um cenário que, ao mesmo tempo, está centralizado no artista e totalmente distante dele. O público, as políticas públicas, os meios de comunicação, os hábitos de consumo, o turismo, o dinheiro, as regras do mercado, a segurança pública, as crises reais e inventadas, o partido político, o nível sociocultural, as metodologias, as geografias, as cosmologias: tudo, absolutamente tudo, atinge o teatro “local”. Não existe teatro (arte) sem contexto, história e uma porção de outras coisas. Não existe um único teatro, um único público, um único artista. Não existe.
É somente assim que é possível se referir a uma produção de teatro, e a termos tais como “mercadológico”, “independente”, “institucional”, “experimental” e toda nomenclatura que indique adjetivação/conceituação/caracterização deste ou daquele lugar de criação. É somente assim que se torna possível pisar em algum terreno. Essa é a cidade que abriga o “maior festival do país e o quinto maior do mundo” e tem ¼ de ano de teatros vazios. Isso não é uma cobrança por “espetáculos” que “precisam” existir porque é o que se espera de uma cidade “assim” – é muito curioso o discurso que cobra por peças de teatro a partir de uma visão um tanto precária sobre o artista e os profissionais envolvidos com as artes cênicas, como quem diz: “Você não quer trabalhar?”, aniquilando assim qualquer discussão sobre as condições de trabalho. Não é sobre idealismo, é sobre condições básicas.
São vários os fatos que assustam quem pensa, se interessa e faz teatro: uma redução visível de público, um certo desinteresse e um contraste enorme entre os espectadores de diferentes manifestações artísticas, são exemplos deles. Assusta também um estranho modo de encarar o próprio aprendizado e ensino de teatro. As escolas não “circulam” entre si, são bolhas – “o que esperar de uma cidade em que os próprios estudantes de teatro não vão ao teatro?” foi uma frase que ouvi no ano que passou.
Qual é o lugar do teatro nessa cidade?
Quem e quando ele abriga? Por que ele se enche? Por que ele se esvazia?
São várias as questões e infinitas as perguntas, não tenho a mínima pretensão de explorá-las todas. Certamente esse é um texto superficial, eu espero que seja! É insuficiente e, por isso, aberto (e é essa a intenção).
No texto da próxima semana eu farei uma espécie de rememoração de parte do que a Intersecção cobriu nesse ano, tentando fazer aproximações temáticas e associações entre algumas obras que constam nesse quase um ano de produção. Para começar, sobre assuntos que envolvem de modo mais direto essas questões estruturais, nas quais eu toco quase-como faíscas no texto de hoje, eu citaria, cronologicamente:
Escrever sobre teatro: um movimento interseccional, leia aqui.
Da grandiosidade e outras medidas, leia aqui.
O teatro mais próximo: uma questão de distâncias, leia aqui.
Por que sempre tão empoeirados?, leia aqui.
Onde estão as pessoas?, leia aqui.
A(s) História(s), leia aqui.
Os limites de um círculo, leia aqui.
Em resposta: o artista, infinito, leia aqui.