Trocando em Miúdos: A peça Rosa em Preto e Branco – O Espelho de Tennessee, em cartaz até o dia 24 de maio, no Teatro José Maria Santos, tem como temática a relação entre a “loucura” e o ofício do ator, a partir da obra e da vida do dramaturgo norte-americano Tennessee Williams.
A produção de Tennessee Williams (pseudônimo de Thomas Lanier Williams) parece sempre ser justificada por sua biografia: a relação conturbada com a família, a saúde debilitada, a introspecção, o uso constante de entorpecentes e uma possível morte envolvendo drogas e barbitúricos são algumas das circunstâncias tratadas. A dramaturgia do autor norte-americano é vista, frequentemente, em relação aos aspectos psicológicos e foi, durante muito tempo, reduzida a uma dramaturgia de “realismo decadente” e “fixada em problemas excessivamente particulares e subjetivos”.
A loucura e a cultura sulista dos EUA talvez sejam os seus temas mais recorrentes. A decadência e a frustração, de fato, quando vistas pelo reducionismo, não permitem revelar as contribuições que alcançam terrenos históricos, sociais e políticos com possibilidades bastante contundentes de leitura. O período das décadas de 1940, 1950 e 1960 foi o mais produtivo para o autor, cuja produção contempla trinta e duas peças curtas, sete médias e vinte e quatro longas (além das adaptações para cinema e tevê).
Tennessee Williams é uma figura interessante para se pensar sobre as fronteiras da autobiografia (obviamente não enquanto formato, mas procedimento), menos no que se refere ao ofício da escrita, e mais ao que tange a leitura e, consequentemente, processos interpretativos capazes de se consolidarem como “verdade”. A parte isso, são os meandros psicológicos que alçaram o autor a panoramas como “um dos maiores dramaturgos do século XX” e “um dos mais influentes autores dos EUA” – especialmente depois de ter ganho o Pulitzer com Um Bonde Chamado Desejo.
É dessa peça, inclusive, o nome que se tornou icônico na obra do autor: Blanche DuBois –personagem que concentra as temáticas envolvendo loucura, desequilíbrio, decadência e frustração, a ponto de se estabelecer como figura simbólica e representativa de Tennessee Williams. A relevância de Blanche também se dá porque a figura da ficção é inspirada em Rose, irmã do dramaturgo, com quem tinha uma relação de intensa admiração e culpa: bastante próximos, Tennessee Williams, acompanhou a sequência de internações de Rose, diagnosticada com esquizofrenia. Sem respostas positivas aos tratamentos terapêuticos, foi submetida à lobotomia, mediante a aprovação dos pais – situação que provocou no autor um sentimento de impotência, revolta e culpa.
A peça Rosa em Preto e Branco – O Espelho de Tennessee, dirigida por Maurício Vogue e com texto e dramaturgia de Rafael Camargo, parte desse universo para a sua composição. Quatro atores (Inés Gutierrez, Laura Haddad, Luiz Carlos Pazello e Sidy Correa), ao trabalharem com materiais de Tennessee Williams, se aproximam da vida e das temáticas do autor, compondo uma relação entre o ofício da atuação e a “loucura” explorada por ele.
O movimento proposto pela montagem, o de “expor” o processo artístico, revelando momentos “anteriores” ao da apresentação, mescla cenas metalinguísticas e cenas extraídas das peças do autor, encadeadas por contínuos black-outs. É interessante perceber a maneira com que o projeto encara a loucura. Diferentemente de Tennessee Williams, que explora as nuances da “loucura/esquizofrenia”, e que entre o radicalismo e a apatia propõe um contraste cuja edificação se afasta de pré-conceitos sobre os desequilíbrios psicológicos, a peça se encaminha para um formato bastante reconhecível no tratamento dado ao tema. A “loucura” dos atores se efetiva com surtos, quedas bruscas, espécies de convulsões que indicam uma recepção muito mais “histérica” do que “esquizofrênica”. As inflexões da voz, a corporeidade e o tom afetado revelam a tênue linha que separa a referência direta e efetiva da loucura, composta de uma extravagância forçosa, de uma composição de um “ator atormentado” sem uma conotação pejorativa (especialmente quando não há a intenção de).
“O movimento proposto pela montagem, o de ‘expor’ o processo artístico, revelando momentos ‘anteriores’ ao da apresentação, mescla cenas metalinguísticas e cenas extraídas das peças do autor, encadeadas por contínuos black-outs.”
O fato de ser uma montagem que utiliza a obra de Tennessee Williams de maneira “indireta”, isto é, não é a encenação de um texto em específico, ainda que esteja absolutamente centrada na vida e na obra do dramaturgo, torna a atualização e a aproximação um dos assuntos da peça. Os atores conversam sobre “a situação do país” e “as recorrentes manifestações”, propondo, provavelmente, pontos de conexão entre os diferentes contextos – sem que haja, no entanto, um discurso político, de fato – evidenciando, talvez, a associação direta e refutada de que Tennessee Williams é sinônimo para a “subjetividade”, desconsiderando o ato político que aí reside. As discussões políticas, aliás, soam mais expressivas particularizadas, quando, por exemplo, um ator decide “interpretar” “um homossexual afetado”, do que propriamente a questões verbalizadas, que se referem a um ambiente mais amplo.
A peça Rosa em Preto e Branco – O Espelho de Tennessee fica em cartaz até dia 24 de maio, de quinta a domingo, às 20 horas, no Teatro José Maria Santos (Rua Treze de Maio, 655).