Todo português possui uma ternura pelo Brasil. A afirmação da eterna fadista Amália Rodrigues encontra eco em todos os grandes nomes da arte lusitana, até mesmo no sempre sóbrio Saramago. O passado que nos une tem sido resgatado nos últimos anos através da cultura, especialmente na música, mas não só. O que aproxima nomes como Matilde Campilho, Carminho, António Zambujo e, mais recentemente, Salvador Sobral, tem vida a partir das similaridades que começam no idioma, mas perpassam a maneira como se usam as palavras, e à eterna sensação de pertencimento que nem um oceano inteiro é capaz de dividir.
Se o temor de ver frigorífico virar geladeira tem alimentado as mentes mais insanas dos que estremecem diante do outro, enxergando em Luccas Neto um colonizador às avessas, é pelo retumbar do coração único, pulsante, vibrante, vermelho como a madeira que dá nome a este país de dimensões continentais, filho das decisões (não todas) daquele que tingiu de vermelho sua bandeira, em homenagem aos que deram o sangue pela pátria, que nos tornamos um só.
Salvador Sobral sabe e sentiu isso em sua recente passagem por São Paulo, início de uma tour por solo brasileiro. Suas duas noites no palco do Sesc Pinheiros dão a real dimensão de um amor que transita em veias que se estendem por todo o ser. O português sentiu-se em casa em apresentações que traziam, majoritariamente, o repertório de seu mais recente álbum, TIMBRE, lançado em setembro de 2023.
O cantor está no auge, não apenas de sua carreira, mas da turnê de seu disco. Nada depois disso será igual. E ele sabe.
Sobral brinca no palco desde o instante que surge, pontualmente, às 18h de um domingo outonal, a partir da própria plateia. Deixando por completo o recato lusitano, o músico português comanda o público, desejoso de ser embalado pelo artista. Ele entra à capela, abraçando com seu canto acolhedor homens e mulheres que se entregam sem receio. O cantor está no auge, não apenas de sua carreira, mas da turnê de seu disco. Nada depois disso será igual. E ele sabe.
Salvador intercala canções, quase todas compostas com Leo Aldrey, que também produz TIMBRE, com declarações públicas de amor ao Brasil e aos brasileiros. O artista leva a sério sua afirmação de que a música nasceu por aqui, e por isso tece conexões umbilicais quando canta. Não é à toa que carrega em seu documento o nome de duas cidades tupiniquins. O show vira um batismo, enquanto o público derrama sua bênção na alma do cantor português. Essa simbiose escancara o único real absurdo das relações entre nossos países: a distância geográfica deveria ser menor.
Salvador nunca esteve tão brasileiro – e o sabe. TIMBRE é Caetano até a raiz, e a relação dos dois é trazida durante a interação do músico com o público – e evidencia o erro da turnê não passar pela capital baiana. E a escolha pelo espanhol, por cantar com Jorge Drexler, o mais tropicalista dos subtropicalistas, o mais baiano dos uruguaios, parece corroborar tal afirmação. Então chega o momento de Tim Bernardes subir ao palco, o convidado de domingo – no sábado, coube a Zé Ibarra o papel de ser o padre do culto de conversão do lusitano à brasilidade.
E, de repente, a apresentação se torna um pagode luso-brasileiro. É tudo festa. É tudo farra. E o cantor português já não esconde a que veio. Ele, que já se sentia em casa, canta Jards Macalé. Sua alma está lavada, como o próprio músico publicou em seu perfil no Instagram anteontem. Salvador Sobral segue sua turnê brasileira hoje em Porto Alegre, quando receberá Vitor Ramil. Depois, irá ao Rio de Janeiro, quando Adriana Calcanhotto subirá ao palco. Seu batismo terminará dia 13, no Recife, com a participação de Martins. Uma ode à brasilidade desse português cheio da ternura que contava Amália.
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