De tempo em tempo, um produto audiovisual aparece com o poder de colocar algum tema na pauta das conversas cotidianas de maneira quase que instantânea. Há alguns poucos anos, foi 13 Reasons Why que jogou nas rodas familiares a urgência de falar sobre o suicídio e a depressão entre jovens. Agora, é a vez da minissérie inglesa Adolescência, da Netflix, causar um fenômeno muito parecido.
Idealizada pelo ator, produtor e roteirista Stephen Graham (que vive o pai dentro da história), Adolescência angariou pelo menos 66 milhões de espectadores em dez dias. É uma marca estrondosa, e que pede alguma explicação sobre o porquê de tanto sucesso. E a resposta a ela pode vir, sim, em relação à sua qualidade (uma crítica no The Guardian categorizou a série como “a coisa mais próxima da perfeição da TV em décadas“). Mas fala, sobretudo, sobre sua capacidade de captar o zeitgeist e dar corpo a uma questão vigente, mas ainda pouco clara: o buraco em que estão enfiados boa parte dos adolescentes contemporâneos, mas, sobretudo, os meninos.
Em resumo, Adolescência conta uma história duríssima: o assassinato de uma menina por um colega de escola, chamado Jamie (Owen Cooper, ator de 15 anos em uma estreia impressionante). No entanto, não se trata um thriller ao estilo “quem matou”. Os quatro episódios, na verdade, entregam um drama complexo que funciona como um caleidoscópio que gira em torno das diferentes facetas dessa tragédia.
Cada um deles parece se centralizar em diferentes protagonistas, e são ambientados em locais diferentes. Temos o detetive de polícia que investiga a história (Ashley Walters), claramente incomodado por ter que lidar com um crime desta natureza terrível; a psicóloga que faz uma avaliação de Jamie (Erin Doherty) e que assusta com ele à mesma medida que tem compaixão; e há o pai que acompanha o adolescente quando ele é preso e sofre as consequências de seus atos (Stephen Graham, em uma atuação monstruosa – preste atenção na última cena do primeiro episódio).
‘Adolescência’ e o âmago da tragédia da adolescência
Mas o grande trunfo de Adolescência, ao que me parece, é que ela não fornece respostas sobre o crime – pois, assim como na vida real, não há explicações simples. O que faz um menino matar uma colega? O que ocorreu (ou não ocorreu) para que se chegasse a esse ponto? O senso comum procura culpados, mas a verdade é que eles são muitos. Como no mistério em Assassinato no Expresso Oriente, de Agatha Christie, são muitas mãos que seguram este punhal.
O que Adolescência vai esclarecendo, por meio de sua narrativa multifacetada, é que há um abismo que só se abre entre os jovens e o resto do mundo.
O pano de fundo aponta a um mundo em que o ideário masculinista (ou, no termo que circula, a “machosfera”) abraça cada vez mais os jovens que se sentem desencaixados de alguma forma. O que acontece que os faz se aproximarem de influencers especializados nesse tipo de discurso do ódio – o nome do influenciador masculinista Andrew Tate é citado na série – é algo que ninguém sabe explicar direito.
O problema está na falta da supervisão dos pais? Na inércia das escolas? Nos perigos trazidos pela internet? Não há como saber ao certo. O que Adolescência vai esclarecendo, por meio de sua narrativa multifacetada, é que há um abismo que segue se abrindo entre os jovens e o resto do mundo. Há uma linguagem (ali simbolizada pelos emojis) que os filhos falam e os pais são analfabetos. Trata-se de uma alegoria que expressa com clareza a cisão entre dois mundos entre os quais restam poucas pontes.
Fala-se muito sobre a questão técnica de usar o plano-sequência em todos os episódios, no intuito de criar uma sensação de naturalidade e autenticidade nas cenas. Mas penso que este é um elemento menor diante das qualidades de Adolescência. O que é preciso atentar aqui é aos detalhes, àquilo que precisa ser decodificado nas minúcias.
São detalhes como a cena em que Jamie se urina quando a polícia entra em sua casa, ou o papel de parede infantil no seu quarto, ou o ursinho que o representa na cama. Ao invés de pintar a figura de um monstro – o personagem mais óbvio quando se pensa nesse tipo de tragédia – há a intenção de mostrá-lo como o menino que é.
Violento, desolado e carente ao mesmo tempo, o adolescente é um retrato da vida tal qual ela existe, para fora dos formatos limitados da ficção. E isso já é o suficiente para colocar Adolescência como uma das melhores séries dos últimos anos.
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