À margem do que se costuma chamar de destino, existe o desejo. E é por meio dele que Um Lobo entre os Cisnes, cinebiografia do bailarino brasileiro Thiago Soares, estrutura sua narrativa: como um movimento contra as expectativas — sociais, geográficas, corporais — e a favor daquilo que pulsa de forma indomável dentro de um corpo que dança. Dirigido por Marcos Schechtman e Helena Varvaki, o filme faz mais do que contar a história de um artista. Ele coreografa a memória de uma ascensão improvável, feita de tropeços, escassez e descobertas.
Nascido em Vila Isabel, zona norte do Rio de Janeiro, Thiago começa sua trajetória entre os passos do hip-hop e as ruas da periferia. O filme recria esse ambiente com sensibilidade e sem folclore, evitando tanto o exotismo da pobreza quanto o romantismo fácil da superação. Interpretado com entrega e carisma por Matheus Abreu, o jovem Thiago é apresentado como alguém que precisa, antes de tudo, acreditar que existe um lugar para si no mundo — e que esse lugar pode ser o palco de uma das companhias mais prestigiadas do balé internacional, o Royal Ballet de Londres.
O grande trunfo de Um Lobo entre os Cisnes está em construir, com elegância e vigor, o arco emocional de seu protagonista. A relação com o mestre Dino Carrera (vivido com rigor e doçura pelo argentino Darío Grandinetti, de Fale com Ela) se dá como um dueto: ora guiado, ora conflituoso. Há entre os dois algo da tradição do cinema de formação — o velho mestre e o jovem rebelde —, mas o roteiro sabe evitar os clichês ao conferir espessura e ambiguidade aos personagens. Dino não é apenas um tutor, é também espelho e sombra.
Filmado entre o Rio de Janeiro e Paris, o longa aposta numa fotografia que alterna calor e frieza: o sol vibrante dos ensaios no Brasil contrasta com a sobriedade azulada das cenas na Europa. Essa dualidade reforça o que está em jogo: não se trata apenas de vencer obstáculos externos, mas de manter acesa a chama que levou Thiago a resistir à ideia de que o balé não era “coisa de homem”, que sua origem o impediria de ir longe, que corpos como o seu estavam fadados a não ocupar certos espaços.
É verdade que a encenação e a montagem obedecem a uma lógica televisiva — o que não surpreende, considerando a trajetória de Schechtman na teledramaturgia. Há um claro apelo à emoção, à fluidez narrativa, e à construção de cenas que miram o impacto imediato. Isso dá ao filme um caráter palatável, popular, mas também o afasta de maiores experimentações formais. O risco é menor, o controle é maior. Ainda assim, essa escolha estética não compromete a força da história nem a densidade simbólica da jornada de Thiago.
É verdade que a encenação e a montagem obedecem a uma lógica televisiva — o que não surpreende, considerando a trajetória de Schechtman na teledramaturgia. Há um claro apelo à emoção, à fluidez narrativa, e à construção de cenas que miram o impacto imediato.
O título — Um Lobo entre os Cisnes — é mais do que uma metáfora: é a imagem que sustenta a tensão central da narrativa. Thiago, vindo de um universo marcado pela informalidade, improviso e dureza, adentra um mundo de codificações, rituais e contenções. Ele é o outro, o corpo estranho. Mas é também aquele que desafia as formas fixas, que faz da dança uma linguagem de insurgência.
Ao final, o filme se oferece como uma ode à persistência, mas também à sensibilidade. À ideia de que é possível — e necessário — ampliar os contornos do que se entende por pertencimento. Thiago Soares não apenas chegou lá. Ele redesenhou o caminho. E Um Lobo entre os Cisnes nos convida, com rara delicadeza, a dançar junto com ele essa jornada de afirmação, beleza e coragem.
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