A Melhor Mãe do Mundo abre e encerra com o rosto de Shirley Cruz ocupando a tela. Gal, sua personagem, encara uma agente social para relatar uma agressão sofrida pelo namorado, Leandro (Seu Jorge). A fala é hesitante, os olhos evitam o contato, mas há firmeza na recusa ao silêncio. É esse tipo de presença, contida e resoluta, que define a atuação de Cruz e ancora o novo filme de Anna Muylaert.
A diretora, que já colocou a maternidade sob tensão em Que Horas Ela Volta? e Mãe Só Há Uma, retoma o tema deslocando-o para uma chave que mescla o melodrama à observação neorrealista. Gal não é um arquétipo nem um caso isolado: é uma mulher negra, trabalhadora precarizada e mãe solo, cuja história é contada pela lente de quem se recusa a estetizar a violência ou transformar a pobreza em ornamento narrativo.
O neorrealismo aparece menos como citação estilística e mais como postura ética. Muylaert privilegia a locação real, a luz natural e a interação viva entre atores e espaço urbano, com a câmera colada à ação para capturar a fisicalidade da jornada. Com a fotografia de Lílis Soares (Ó, Paí, Ó 2), a São Paulo filmada é a dos acostamentos perigosos, do asfalto em brasa, dos galpões isolados e das praças que se tornam abrigo comunitário à noite. É a cidade que está diante dos olhos, mas que tantas vezes treinamos para não ver.
O centro dramático se desloca no miolo para um road movie urbano: Gal, ao fugir, transforma a travessia com os filhos pela cidade numa “aventura” narrada para proteger o olhar infantil. O dispositivo remete a A Vida É Bela, do italiano Roberto Benigni, mas aqui a dimensão realista pesa mais do que o artifício. Ainda assim, há um hiato dramático nesse trecho: o rigor da observação social não se traduz integralmente em tensão narrativa, deixando a jornada momentaneamente à deriva.
O filme reencontra força no terceiro ato, quando volta à intimidade das relações. Muylaert constrói, com economia de recursos, a tensão entre Gal e Leandro — e entre o casal e a família — revelando as dinâmicas abusivas sem recorrer à sobrecarga melodramática. É nesse ponto que a fusão entre neorrealismo e melodrama encontra equilíbrio: a mise-en-scène se mantém crua, mas abre espaço para a densidade emocional que dá sentido à trajetória da protagonista.
Muylaert constrói, com economia de recursos, a tensão entre Gal e Leandro — e entre o casal e a família — revelando as dinâmicas abusivas sem recorrer à sobrecarga melodramática.
O título carrega ironia e precisão. “A melhor mãe do mundo” não é a idealizada pelo sacrifício, mas a que sobrevive e mantém sua humanidade. Não há final feliz no molde clássico; o que resta é um gesto de liberdade possível, precário e digno. É um desfecho coerente com a lógica neorrealista: não há resolução plena, mas um fragmento de vida que segue em aberto.
Nos primeiros e nos últimos minutos, A Melhor Mãe do Mundo atinge seu ponto mais alto: o rosto de Gal, a respiração pesada, o corpo como arquivo de uma luta silenciosa. Entre esses extremos, há um filme de camadas desiguais, mas sustentado por uma convicção autoral: a de que é preciso olhar de frente para vidas invisibilizadas e devolvê-las ao centro do quadro.
Gal segue caminhando, e a câmera de Anna Muylaert — como o neorrealismo sempre defendeu — caminha com ela, não para oferecer redenção, mas para registrar a resistência.
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