Há quase meio século, a Mostra Internacional de Cinema de São Paulo tem o hábito saudável de fazer do mês de outubro um território cinematográfico suspenso no tempo. A cidade — ruidosa, caótica, às vezes desinteressada — transforma-se por duas semanas em sala de exibição coletiva, refúgio e zona de encontro para quem ainda acredita no poder político e estético da tela grande. Em 2025, de 16 a 30 de outubro, essa vocação se reafirma: são 374 obras de 80 países, espalhadas por 52 salas e espaços culturais, num gesto de escala quase desafiante frente ao esvaziamento de tantos circuitos exibidores no mundo.
O festival abre com o longa Sirât, do espanhol Oliver Laxe — premiado no Festival de Cannes —, seguido do curta Como Fotografar um Fantasma, do roteirista e diretor Charlie Kaufman, que também participa de masterclasses e conversas com o público. Já a cerimônia de encerramento traz Jay Kelly, de Noah Baumbach, como um elegante fecho para uma edição marcada pela convivência entre veteranos e estreantes. Entre esses polos — a reverência e a descoberta — está a pulsação que dá à Mostra sua identidade.
Os homenageados ajudam a reforçar esse arco de continuidade: a cineasta martinicana Euzhan Palcy recebe o Prêmio Humanidade; o quadrinista Mauricio de Sousa leva o Prêmio Leon Cakoff, num gesto de aproximação entre o cinema e a cultura popular. Na parede da memória, estão também os clássicos restaurados — de Queen Kelly (1932), de Erich von Stroheim, à cópia reluzente de Sholay (1975), de Ramesh Sippy —, como se cada sessão fosse um lembrete: o cinema que virá se constrói com o que já foi.
Passado, presente e futuro
Entre as estrelas da programação, a seleção impressiona: Foi Apenas um Acidente, do iraniano Jafar Panahi — Palma de Ouro em Cannes —, chega com seu diretor presente em São Paulo para um encontro histórico com o público. Frankenstein e Cronos, de Guillermo del Toro, traçam uma linha sinuosa entre a gênese e a maturidade criativa de um dos grandes fabuladores do nosso tempo. E nomes como Jim Jarmusch, Park Chan-wook, Richard Linklater e Michel Gondry figuram ao lado de estreantes que terão, para muitos espectadores, sua primeira chance de brilhar.
A Mostra de São Paulo nunca foi apenas um evento cinematográfico. Ela é, na prática, uma espécie de pulsação anual.
A 49ª Mostra não ignora o presente — pelo contrário, o encara com urgência. Filmes sobre a Palestina, como Era uma Vez em Gaza, Com Hasan em Gaza e Palestina 36, fazem ecoar na tela um conflito que transcende geopolítica e atravessa corpos, identidades e histórias pessoais. Em outra chave, o curta Alma Errante – Hibakusha e Chuva Negra, de Shohei Imamura, lembram os 80 anos da bomba de Hiroshima, em sessões acompanhadas de um tributo musical à canção “Rosa de Hiroshima”. O festival reafirma, assim, que o cinema não é mero entretenimento: é testemunho e contra-arquivo.
Pela segunda vez, a Mostra dedica espaço robusto às crianças com a 2ª Mostrinha — um programa de longas e curtas que busca formar novos públicos. O cartaz da edição é assinado pelo escritor e artista visual Valter Hugo Mãe, cuja obra inspira uma mostra especial que inclui a estreia mundial de O Filho de Mil Homens, dirigido por Daniel Rezende e protagonizado por Rodrigo Santoro. A escolha do autor português é simbólica: seu traço gráfico minucioso e sua literatura humanista condensam a alma deste festival — a crença em narrativas capazes de tocar e transformar.
Debates e itinerância
Além das exibições, o V Encontro de Ideias Audiovisuais volta a transformar a Cinemateca Brasileira em um centro de debates e trocas, com painéis, masterclasses e mentorias. É nesse espaço que Kaufman conversará com o público, que Valter Hugo Mãe dividirá o palco com Laerte e Miguel Gonçalves Mendes, e que artistas de diversas partes do mundo reconstroem coletivamente os caminhos possíveis do cinema. Em tempos de desmonte e precarização, esses gestos são mais que protocolos de festival: são formas de resistência.
A itinerância — passando por cidades do interior paulista, além de Manaus e Belém — expande o alcance do evento e reafirma sua vocação pública. A inclusão de sessões gratuitas e exibições ao ar livre, em parceria com espaços como o Museu da Língua Portuguesa, ajuda a dissolver as fronteiras entre o circuito de festivais e o cotidiano urbano. É o cinema, outra vez, saindo da bolha.
Na premiação, o júri — que inclui nomes como o produtor Atilla Salih Yücer e o crítico Peter Debruge — entrega o tradicional Troféu Bandeira Paulista. Além dele, o Netflix concede novamente um prêmio a um filme brasileiro inédito em streaming, e o coletivo BRADA volta a reconhecer trabalhos de direção de arte. A novidade é o Prêmio Prisma Queer, sinalizando a abertura cada vez maior para produções LGBTQIA+.
A Mostra de São Paulo nunca foi apenas um evento cinematográfico. Ela é, na prática, uma espécie de pulsação anual: um lembrete de que, mesmo cercado por crises políticas, econômicas ou culturais, o cinema encontra jeitos de continuar falando — e, mais importante, de ser ouvido. Em sua 49ª edição, entre fantasmas fotografados por Kaufman, monstros de Del Toro, realidades árabes sob cerco e clássicos restaurados, São Paulo se reafirma como capital simbólica da cinefilia. Uma cidade que, ao menos por duas semanas, se lembra do poder transformador da tela escura.
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