Com Hurry Up Tomorrow, The Weeknd encerra — ou performa encerrar — a persona que o transformou em um dos artistas mais influentes da música pop dos últimos quinze anos. O álbum nasce carregado de promessa: seria o “fim”, o fechamento do arco narrativo que vem sendo construído desde After Hours (2020). Mas The Weeknd sempre brinca com a própria mitologia, e aqui não é diferente. Se o encerramento existe, ele é mais teatral do que factual, mais uma última volta no palco do que uma despedida definitiva. Ainda assim, há algo profundamente atraente nesse exagero — e o disco se sustenta justamente na tensão entre verdade emocional e artifício.
Ao longo das mais de 20 faixas, o que emerge é um protagonista em colapso, lutando contra a fama, contra a própria voz, contra a ideia de legado. Em “Wake Me Up”, ele aciona o tom confessional com uma urgência existencial: “All I have is my legacy / I been losing my memory”. É uma abertura que já indica o caminho da obra: um artista observando sua imagem como se estivesse do lado de fora, tentando entender o que ainda resta de si depois de tantos personagens, turnês e lucros. A produção grandiosa, que mistura crescendos orquestrais com synths melancólicos, reforça o clima de um crepúsculo emocional — mas é um crepúsculo iluminado por holofotes.
Essa oscilação entre o íntimo e o espetacular, marca registrada de The Weeknd, atinge seu ponto máximo em faixas como “Enjoy The Show”, possivelmente o coração temático do disco. Ali ele crava: “I just wanna die when I’m at my fuckin’ peak”, linha que sintetiza tanto o narcisismo ferido quanto a teatralidade autodestrutiva do artista. É melodrama puro, e não há tentativa de nuance. A beleza está justamente na falta de sutileza: o cantor transforma a angústia em espetáculo, sabendo — e dizendo — que isso é um espetáculo. É o tipo de autorreferência que, dependendo da disposição do ouvinte, pode soar como autopercepção ou como autoparódia.
A força do disco não está necessariamente na profundidade poética, mas na maneira como Abel Tesfaye encena um colapso diante do ouvinte.
As letras — muitas vezes simples, até banais — ecoam na experiência de escutar o álbum. Há versos óbvios, redundantes, que parecem repetir conceitos já explorados à exaustão em trabalhos anteriores. Mas ao mesmo tempo, a força do disco não está necessariamente na profundidade poética, mas na maneira como Abel Tesfaye encena um colapso diante do ouvinte. Hurry Up Tomorrow é menos um livro de aforismos e mais um diário de humor oscilante, às vezes brilhante, às vezes cansado. Nesse sentido, o problema não é exatamente a simplicidade das letras, mas sua recorrência — The Weeknd insiste tanto nos temas de culpa, queda e exaustão que, em determinados momentos, o impacto emocional se dilui.
A própria duração da obra, que ultrapassa os 80 minutos, contribui para esse desgaste. Apesar da produção impecável — e ela é, de fato, irrepreensível em muitos momentos —, há seções em que a narrativa perde força. Interlúdios como “I Can’t Fucking Sing”, embora interessantes como gesto metamusical, interrompem mais do que ampliam a imersão. Instrumentais como “Until We’re Skin & Bones” funcionam como respiros, mas também reforçam a sensação de que o álbum poderia ser mais concentrado, mais consciente do próprio peso.
Ainda assim, há momentos luminosos que justificam o percurso. “Baptized In Fear”, com sua metáfora de afogamento espiritual, é uma das melhores combinações entre letra, arranjo e interpretação vocal do disco. “Open Hearts” retoma a busca pela possibilidade de amar apesar da ruína, e funciona como um contraponto delicado à brutalidade emocional de faixas mais densas. “The Abyss”, com participação de Lana Del Rey, é um encerramento emocionalmente devastador — um mergulho em que o eu lírico abraça o fim com uma serenidade que não apareceu antes. E a faixa-título, “Hurry Up Tomorrow”, é quase uma oração, um gesto de entrega que tenta transformar desespero em transcendência.
Mesmo “São Paulo”, com participação de Anitta, introduz um elemento curioso: um deslocamento geográfico e sonoro que brinca com sensualidade e exotificação enquanto empurra o álbum para um terreno mais híbrido. Ainda que não esteja entre as faixas mais coesas do projeto, ela serve como válvula de escape dentro desse universo sufocante que o disco constrói.
O que realmente emerge, ao final, é a imagem de um artista consciente do próprio mito — e decidido a expandi-lo até o limite. Hurry Up Tomorrow não é perfeito, e talvez nem seja inteiramente honesto. Mas é um álbum fascinante justamente por isso: porque abraça o melodrama, o excesso, a autopiedade, a megalomania. Porque tenta transformar falhas em estética. Porque transforma o público em plateia de um último ato que pode ou não ser final, mas que, de qualquer forma, quer ser inesquecível.
O disco é um grande gesto teatral — e The Weeknd, se está mesmo encerrando um ciclo, o faz com a certeza de que não existe nada mais pop do que morrer no palco e renascer no dia seguinte.
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