Pensar a obra de Franz Kafka (1883 – 1924) é, quase sempre, imaginar um universo em desencanto, repleto do absurdo, da burocracia e de uma letargia sem fim. O texto mais famoso do escritor tcheco, A Metamorfose, acaba de completar seu centenário e parece cada vez mais coerente à realidade contemporânea. A história de Gregor Samsa, um caixeiro viajante que acorda metamorfoseado em um inseto após ‘sonhos intranquilos’, é muito mais que o reflexo do caos interior de seu autor, ao mesmo tempo atormentado e cheio de humor.
Marcelo Backes, professor, escritor e tradutor de Kafka no Brasil, vê n’A Metamorfose um importante paralelo com o modelo social conservador e cheio de regras e obstruções de quanto a narrativa foi criada com os nossos dias. “Tente cancelar sua conta telefônica, sua assinatura da televisão a cabo e verás o que é o mundo kafkiano em seus aspectos mais comezinhos”, afirma.
É claro, a relação de Kafka com o pai nunca foi fácil e Carta ao Pai (1952), que apesar de nunca ter sido entregue ao destinatário, veio ao mundo para prová-lo. Como se pode perceber, relembra Backes, Samsa e Kafka são, praticamente, a mesma palavra. Mas seria em A Metamorfose que o escritor faria uma exegese autobiográfica. “Percebe-se muita honestidade e clareza no trato dos assuntos familiares e burocráticos, os relativos ao aviltante mundo do trabalho, em A metamorfose, ao passo que a Carta é uma das cartas mais longas escritas na história da humanidade”, explica o tradutor.
Tanto n’A Metamorfose quanto em Carta ao pai, Kafka trabalha o medo, a repressão e, claro, a culpa. O próprio Kafka ao se referir – à noiva Felice – sobre o primeiro texto, disse que escrevia uma “história repulsiva”.
Uma questão de culpa
Kafka foi por anos alguém que não queria ser e só conseguiu refugiar-se do pai tirano e do emprego que lhe tirava as forças quando passou a se dedicar integralmente à literatura. O sentimento de culpa e vergonha trazido pela recusa de uma vida social ‘adequada’ deixava o escritor às raias do desespero e da infelicidade. Isso fica evidente na maioria de seus trabalhos, como n’ O Processo (1925) ou no conto “Ser Infeliz”, do livro Contemplação (1912). “O consolo é que, por mais complicada que seja nossa relação com o mundo, sempre sentiremos uma vergonha até certo ponto redentora ao ler Kafka: a vergonha de perto dele e, pelo menos em alguns momentos de nossa vida, nos sentirmos tão fortes”, justifica Backes.
Ainda que, no andar do tempo, muita coisa mudou, o escritor tcheco consegue falar no ouvido do seu leitor contemporâneo. A questão da convivência problemática entre as estruturas de poder – no caso do livro, a família e o trabalho – e o indivíduo é tão atual e pertinente quanto foi há cem anos. A obra guarda também o conflito edipiano de um filho culpado por odiar um pai poderoso, mas que, no final das contas, deseja substituir o medo que carrega consigo por um amor correspondido.
“O embate entre sujeito e mundo e a impossibilidade de adequação e encaixe do primeiro no segundo, é um sentimento dos mais universais – e talvez jamais tenham sido descritos com tanta precisão como na obra de Kafka”, diz Backes.
O sentimento de culpa e vergonha trazido pela recusa de uma vida social ‘adequada’ deixava o escritor às raias do desespero e da infelicidade. Isso fica evidente na maioria de seus trabalhos.
Humor
É praticamente impossível falar d’A Metamorfose e não relembrar o episódio em que Kafka leu parte do texto para amigos às gargalhadas. O caso se deu em 24 de dezembro de 1912, em Praga, cidade natal do escritor. O relato serviria como base para a descoberta – ou análise – de um humor latente na obra. Ao contrário do senso comum, que vê no texto a melancolia e o caráter atormentado de seu autor, Backes observa que Kafka deixou algo de humorístico propositalmente escamoteado no conto de um homem que acorda transformado em um inseto.
Segundo o ele, a metamorfose é, por si só, um objeto de humor. “Me parece carregada de humor uma cena como a que Gregor Samsa pensa que certamente poderá se explicar mais tarde pela ‘pequena indelicadeza’ de não permitir a entrada do gerente, que vem até sua casa cobrar seu atraso e sua presença no trabalho, imagina só, em seu quarto. Sem contar que Gregor ainda pensa que não será por isso que o gerente o mandará embora”.
Nesse sentido, o relato guarda seu tom de humor justamente na inversão da ordem natural das coisas. Apesar de saber do potencial do que havia criado, Kafka duvidou do alcance que o texto teria e chegou a tachá-lo de “ilegível”. O texto direto, duro e sem rodeios é, talvez, o elemento que mais esconda a graça. “Seu estilo é marcante, o que configura quase um paradoxo. É como se Kafka não necessitasse da muleta do estilo – em seu aspecto linguisticamente subjetivo, pelo menos – para fazer brotar seu eu, sua individualidade”, afirma Backes. O escritor argentino Jorge Luis Borges (1899 – 1986), para definir seu congênere tcheco, o chamou carinhosamente de “deselegante”.
Classificação livre
Outra questão que sempre levanta debate é o gênero literário em que A Metamorfose está inserida. A primeira confusão envolvendo o relato de Gregor Samsa aconteceu quando Kafka tentou, em fevereiro de 1914, publicá-lo em uma revista. O editor da publicação era o romancista Robert Musil (1880 – 1942) que, mesmo tendo gostado da história, precisou rejeitá-la por ser longa demais para uma magazine. E outros imbróglios viriam.
Nos últimos cem anos, muito se falou sobre a classificação de gênero em que A Metamorfose está. A edição publicada pela Companhia das Letras, e traduzida por Modesto Carone, foge à luta ingrata de limitar o texto e a classifica como “ficção alemã”. Já a edição traduzida por Backes e publicada pela L&PM a chama de “literatura estrangeira”. A discussão é ampla e não envolve somente as traduções brasileiras.
Na Alemanha o livro é chamado de Erzählung, ou seja, ‘narrativa’. Enquanto no Brasil a diferença entre conto e novela leva em consideração a extensão do texto, os alemães são mais profundos nos elementos que diferenciam os dois gêneros. O escritor e tradutor Paul Heyse (1830 – 1914), Nobel de Literatura em 1910, é o responsável por elaborar a ‘teoria do falcão’, inspirada em uma novela do renascentista italiano Giovanni Boccaccio (1313 – 1375). A teoria, capaz de tirar a ‘prova dos noves’ para descobrir se um texto é conto ou novela, diz “que toda novela deveria apresentar uma peculiaridade equivalente ao falcão de Boccaccio, um elemento em torno do qual tudo gira, que não está em primeiro plano, mas é o ponto que serve de catapulta e desenlace à narrativa”, explica Backes, que completa afirmando que o dilema só aumenta quando A Metamorfose é encartada em coletâneas de contos de Kafka.
A METAMORFOSE | Franz Kafka
Editora: Companhia das Letras;
Tradução: Modesto Carone;
Tamanho: 104 págs.;
Lançamento: Agosto, 1997.