O que é vida e o que é morte, e quando de fato elas se encerram e reiniciam em um ciclo infindável? O que é fato e o que é ficção quando nos atentamos à vida que representamos todos os dias, nas diversas “máscaras” que vestimos no cotidiano? Vida e representação são temas que vem à tona a partir do documentário Olmo e a Gaivota, da brasileira Petra Costa e da dinamarquesa Lea Glob. A gestação, aqui, é processo, conflito, aprendizado, que se desenrola junto ao espectador, e não simplesmente uma dádiva (por isso mesmo, idealizada) recebida pelas mulheres.
Olmo e a Gaivota, de alguma forma, pega carona em um tema em voga no momento, que é a discussão acerca da gravidez e a reivindicação de um novo olhar sobre a maternidade, menos propenso à fantasia. No filme, participamos do cotidiano de Olivia Corsini e Serge Nicolai, vivenciando um fato determinante à existência de toda mulher (e todo homem): a descoberta da gravidez e o desenvolvimento dela, com todos os conflitos e alegrias do processo.
Olivia e Serge são atores da companhia Théâtre du Soleil, em Paris, e ensaiam uma montagem de A Gaivota, de Tchekov. Após a surpresa da notícia (ao qual acompanhamos, como participantes desta casa), Olivia resolve continuar trabalhando, mas um hematoma no útero coloca sua gestação em risco e ela precisa ficar restrita às paredes de seu apartamento.
Ousado enquanto formato, Olmo e a Gaivota brinca com as estruturas narrativas típicas do documentário, tentando embaralhar as convenções estabelecidas para a ficção e não-ficção. O hibridismo se evidencia, especialmente, nas inserções de Petra Costa e Lea Glob, cujas vozes aparecem de tempo em tempo dando instruções a Olivia e Serge e problematizando o que aqui seria considerado como “vida real”. Conforme pontuado pelo crítico Pedro Butcher em sua análise (leia aqui), talvez o mais real em Olmo e a Gaivota seja a barriga em crescimento de Olivia.
Sob outro ponto de vista, é possível dizer que o filme traz uma espécie de denúncia quanto às convenções do documentário, e escancara a limitação de se assumir este tipo de produção como o gênero do “autêntico”, que revela quem são de fato as pessoas quando não estão atuando, querendo parecer algo diante de uma câmera. Ao expor o ensaio e a repetição das falas proferidas por Olivia e Serge, Olmo e a Gaivota parece sugerir a pergunta: afinal, se tudo é representação, em alguma medida, por que o documentário estaria (necessariamente) mais perto do real do que outros formatos?
Se em Elena, Petra Costa tratava da busca do entendimento da morte da irmã, em Olmo e a Gaivota, de alguma forma, a temática aborda também a morte, esta metafórica, de uma mulher que morre e renasce enquanto mãe.
Em comum com Elena, documentário anterior de Petra Costa, está o fascínio pelos registros amadores de cenas cotidianas (muito comuns na época das câmeras VHS, nos anos 1980 e 1990, e hoje paradoxalmente mais raros, ainda que as câmeras estejam muito mais populares) e o apreço à temática da memória e os rastros da história por meio destas imagens. Em várias cenas, Olivia narra-se a partir dos vídeos que documentaram sua adolescência e juventude, embaralhando, mais uma vez, a narrativa de autenticidade (como ela se mostra, se exibe perante o dispositivo) e a narrativa da lembrança (como ela significa a si mesma no passado).
Se em Elena (2012) Petra Costa tratava da busca do entendimento da morte da irmã, em Olmo e a Gaivota, de alguma forma, a temática aborda também a morte, esta metafórica, de uma mulher que morre e renasce enquanto geradora de uma nova vida. Há uma bela cena que simboliza, talvez involuntariamente, este rito. Na festa que Olivia e Serge dão para os amigos, como uma espécie de “chá de bebê”, os convidados, em certo momento, jogam flores na mulher que está grávida. Com a câmera abaixo do nível dos olhos, em contra-plongée, a cena remete, em algum aspecto, a um velório simbólico de que alguém que se despe de sua antiga personalidade e renasce, agora como mãe.
O olhar delicado – e mais realista – sobre a maternidade é o grande trunfo de Olmo e a Gaivota, indo, paradoxalmente, de encontro e ao encontro dos tantos discursos que buscam hoje (re)significar o que é o feminino na contemporaneidade. Olivia, como tantas outras mulheres, representa a todas que se veem hoje neste conflito entre ser gaivota (a liberdade, o voo, a ambição) e o olmo (as raízes, a solidez da base, remetendo a uma espécie de árvore e ao nome que o casal escolhe ao seu filho).
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As artes que ilustram esta crítica pertencem a Manuela Eichner e foram produzidas originalmente para o texto. Confira mais trabalhos da artista em http://cargocollective.com/manuelaeichner.
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