Imagine se existisse um chip acoplado atrás da sua orelha e que permitisse que você registrasse todos os seus atos de vida para revivê-los mais tarde, em vídeo, em qualquer lugar e quando quisesse. Você também teria a opção de apagar arquivos, avançar a gravação, retroceder, pausar, colocar em pen-drives. Não haveria mais a necessidade de tirar fotos, imprimi-las, colocá-las em portas-retrato. Tudo ficaria gravado na sua retina. Assim, festas de aniversários, passeios no parque, encontro com amigos, dias agradáveis, tudo isso seria reproduzido na íntegra e sem cortes. Porém, também seriam gravados momentos não muito bons, como a morte de um parente, traições, términos dolorosos, momentos que gostaríamos de esquecer. Em princípio, a ideia parece interessante, mas logo percebemos que um dispositivo como esse poderia, por exemplo, nos fazer perder a capacidade de observação, já que tudo seria armazenado para que pudéssemos ver mais tarde, na tela fria e impessoal da televisão ou do smartphone. Também perderíamos a capacidade de perdoar, já que a qualquer momento, poderíamos reviver uma discussão que aconteceu há meses, reacendendo feridas que o tempo, benevolente, fez questão de apagar.
A situação apresentada aqui é hipotética, mas não há como não lembrar do Google Glass, dispositivo semelhante a um par de óculos, que fixados em um dos olhos, disponibilizava uma pequena tela acima do campo de visão. A pequena tela apresentava ao seu utilizador mapas, opções de música, previsão do tempo e era possível efetuar chamadas de vídeo ou tirar fotos de algo que se estivesse vendo e compartilhar imediatamente por meio da internet. É nesse universo tecnológico futurista que se encontra a incômoda Black Mirror, série britânica que estreou em 2011 e que, recentemente, teve seus direitos adquiridos pela Neflix, que vai produzir novas histórias.
Criada pelo jornalista e roteirista Charlie Brooker, Black Mirror é composta por apenas três episódios em cada uma de suas duas temporadas (além de um especial de Natal), que apresentam as consequências de tecnologias já existentes – como biochips, reality shows e mídias sociais. Todos os episódios contam uma história distinta, sem ligação com a anterior, mas com um ponto em comum: uma visão pessimista sobre a tecnologia atual. Embora as situações apresentadas ali sejam bem bizarras, tudo é perfeitamente crível, apontando o dedo para o telespectador e fazendo uma crítica social que nos dá um soco no estômago. Afinal, até onde somos reféns de nossos celulares, de programas de televisão que utilizam o sofrimento alheio para alimentar nosso sadismo, de redes sociais que absolvem ou culpam em questão de segundos? A culpa é da tecnologia ou do ser humano?
Black Mirror é obrigatória. É incômoda. É começar a rir de uma piada para segundos depois perceber que a piada é sobre você.
Quase como uma versão moderna de Além da Imaginação (The Twilight Zone), Black Mirror mostra contos perfeitamente possíveis. Toda a tecnologia mostrada ali já existe, embora em menor nível de desenvolvimento, digamos assim. Dessa forma, o impactante primeiro episódio poderia muito bem acontecer.
Em “The National Anthem”, um integrante da família real, a princesa, é sequestrada. Para salvá-la, o primeiro-ministro da Inglaterra recebe um vídeo, no qual contém instruções claras do que deveria fazer para salvar a Princesa. Em rede nacional, sem cortes ou truques de imagem, ele deveria transar com uma porca. A partir disso, vemos uma discussão sobre a cobertura midiática tradicional versus cobertura pelas redes sociais, as piadas de péssimo gosto proferidas online, o lugar do jornalismo, a força da opinião pública na era da internet e como o ser humano pode ser extremamente maldoso, a ponto de sentir prazer com a humilhação alheia. Black Mirror faz uma crítica social tão violenta que o espectador pode terminar os episódios se sentindo mal, tamanho o impacto de suas histórias, em um produto capaz de causar reflexões profundas.
Aliás, é interessante perceber que o episódio em questão – exibido em 2011 – faz mais sentido ainda hoje. Os ataques terroristas em Paris, por exemplo, geraram uma enxurrada de vídeos no YouTube, com cenas fortes de cidadãos sendo mortos. Nós, a audiência, assistimos a tudo com um misto de choque, êxtase e preocupação, uma fascinação mórbida que nos encanta, embora isso jamais seja dito em voz alta. Black Mirror, então, tem a coragem de colocar um espelho na frente do espectador, que se sente exposto, denunciado. E não precisamos de exemplo drásticos como os atentados em Paris. Afinal, basta ligarmos qualquer programa dominical da televisão aberta para nos depararmos com a exploração alheia ao custo de míseros dígitos da audiência. O público até percebe que aquilo, no fundo, não é muito certo, mas queremos nos emocionar.
Black Mirror é uma hipérbole dos nossos dias, um olhar cínico e pessimista sobre o futuro. A série é um alerta, um chamado, avisando que não há mais realidade. Ao invés disso, temos telas negras (a black mirror do título), impessoais, frias, planas. No segundo episódio, por exemplo, não vivemos mais em um mundo real, mas em uma espécie de academia, onde passamos o dia todo em uma bicicleta ergométrica. As pedaladas geram pontos e esses pontos são utilizados para tudo, desde comer, fazer sexo ou participar de um reality show no mesmo estilo de Britain’s Got Talent, onde a plateia não é feita de carne e osso, mas de avatares. Quem vence o programa, participa de um programa de televisão, fica famoso mundialmente e vai viver uma outra realidade alternativa.
A série é o nosso espelho mais cruel, um reflexo deformado da nossa cultura. E ainda que discuta tecnologia, Black Mirror trabalha e reflete o elemento humano, sendo a tecnologia apenas uma ferramenta. Em determinado episódio, por exemplo, vemos uma mulher sofrendo com o luto de seu marido. Porém, por meio de um novo aplicativo, ela pode falar com seu falecido marido por meio de mensagens de texto e até mesmo voz, tudo por causa de uma tecnologia que capta todas as atividades online enquanto a pessoa era viva, recriando uma inteligência artificial. Embora pareça futurista demais, temos, hoje, no Facebook, memoriais que mantém a pessoa “viva” e até mesmo uma turma nos Estados Unidos que pretende lançar o mesmo aplicativo visto na série, com interação e conversas que simulem a pessoa morta. Tudo pode parecer absurdo demais, mas qual seria nossa reação, caso o aplicativo estivesse disponível a todos?
A série é genial e assustadora justamente porque simula o desaparecimento do real, ao mesmo tempo em que, para nós, nada parece muito distante da realidade atual. Ainda que apocalíptica, é a denúncia de que somos submissos aos meios tecnológicos e midiáticos sem percebermos. Seríamos, enfim, escravos eternos de uma tecnologia que faz emergir nosso pior lado.
Black Mirror é obrigatória. É incômoda. É começar a rir de uma piada para segundos depois perceber que a piada é sobre você. É um soco de realidade necessário e imperdível.